quarta-feira, 31 de maio de 2023

Sérgio Godinho – Canto da Boca (1981)


Canto da Boca encerra uma das mais frutíferas trilogias da canção nacional e permitiu a Sérgio Godinho desbravar caminho para uma nova fase da sua carreira.

Há um refrão em Canto da Boca que oiço em repeat uma e outra vez para as delícias da minha cachopa. Sérgio Godinho canta uma métrica que mais ninguém conseguiria cumprir – como é seu apanágio – e a resposta vem de um coro feminino que lhe responde: “Sei lá”, ”Sei lá, sei lá” e “Ahahah”. A canção é “Caramba” e apesar da sua enorme qualidade perde-se no alinhamento estonteante que constitui esta obra.

Canto da Boca, editado em 1981, é o final de uma trilogia de discos excepcionais e marca aquilo que podemos apelidar de uma terceira fase godinheira. A primeira fase engloba os discos à guitarra Os Sobreviventes e Pré-Histórias. Da segunda brotaram À Queima-Roupa e De Pequenino Se Torce o Destino, os discos de refluxo da ditadura. Mas esta terceira fase, que começa com Pano-cru, marca um distanciamento do antigo Sérgio. As músicas de cariz político vão à vida delas, entrando em primeiro plano as canções das emoções, que nos mostram um país em mudança sem nunca fugir da tradição e um conjunto de personagens cativantes. São as canções de amor, de interrogação e de vidas, que não tornam difícil não traçar um paralelo entre o percurso escolhido pelo miúdo imberbe do Porto e aquele que Bob Dylan traçou para si do outro lado do Atlântico.

Falemos então de Canto da Boca aquele que, a par de Os Sobreviventes, é o melhor disco de Sérgio Godinho. O álbum de 1981 arranca com um motivo de piano tocado por João Paulo Esteves da Silva – um dos maiores tesouros da música portuguesa – ao qual se junta o resto da banda que conta com um compasso quaternário bem marcado pela bateria e repleto de fills sublimes de António José Martins (também ele uma relíquia). Dizer que “Antes o Poço da Morte” marca o nível do disco é redutor. Apesar de estabelecer logo ao início uma bitola bastante alta, é uma das canções mais fracas deste álbum, o que só abona a favor do sétimo volume gravado por Godinho.

Com uma excelente banda a acompanhá-lo, incluindo Lia Gama e Shila (a então mulher de Sérgio Godinho) nos coros, ou Pedro Caldeira Cabral na flauta, Canto da Boca quase parece uma colectânea das melhores canções da carreira do músico. E não estamos a falar de um daqueles best of ranhosos que trazem uma boa canção e depois restos de catálogo sem qualquer qualidade ou interesse. Aqui é tudo (ou quase tudo) material de primeira linha.

“Já Joguei ao Boxe, Já Toquei Bateria” é uma canção de fincar o pé e não permitir que outros decidam o nosso próprio destino e tem um belo solo de piano de João Paulo Esteves da Silva. “O Porto Aqui Tão Perto” traz-nos um ensaio à moda tradicional, que vai buscar tantas influências a José Mário Branco como a Fausto Bordalo Dias. “Eu Contigo” tem um tom algo infantil, mas certeiro. Já “O Rei Vai Nú” é uma canção nada original no cancioneiro godinheiro, mas mesmo assim inesquecível e que soa às canções que Chico Buarque faria se tivesse nascido a norte do Douro e não em Catete.

A canção mais conhecida do disco é “Com um Brilhozinho Nos Olhos” e é, claramente, a canção com mais potencial comercial devido ao seu refrão repetitivo, soalheiro e certeiro (“Hoje soube-me a tanto, portanto/ Hoje soube-me a pouco”). É uma canção que remete para amizades duradouras e que levam amigos a abraçarem-se depois de muito tempo sem se verem por um deles estar (sei lá) na Suécia ou noutro país longínquo.

E se a sexta-feira ficou indissociável dos Cure, os sábados de porrada do Elton John, a terça-feira merecia ser conhecida em português como “o dia do Sérgio Godinho” pela autoria da lindíssima “É Terça-Feira”. Uma canção sobre uma outra Etelvina que ganha a vida na feira da Ladra e que nos faz apaixonar por ela enquanto desce a “escada quatro a quatro”, esperando sempre pela quarta-feira, onde tudo será melhor.

De destacar ainda duas canções das quais gosto particularmente: “Espalhem a Notícia” e “Sempre Foi Assim”. Embora muitos olhem para a primeira como uma canção sobre o nascimento de um filho devido aos versos “Sãos e salvos, felizmente/ E como o riso vem ao ventre / Assim veio de repente / Uma criança”, não a consigo dissociar de uma das canções mais sensuais que a música portuguesa já deu à luz. A forma como Godinho declama “eu fui ao fim do mundo / Eu vou ao fundo do mim / Vou ao fundo do mar / No corpo de uma mulher bonita” não deixa de me arrepiar os pêlos dos braços e da nuca, colocando-me com um sorriso parvo e infantil de quem vê uma mulher nua.

Por fim, “Sempre Foi Assim” é a verdadeira canção de paternidade deste disco. Além de empregar uma das expressões mais engraçadas que conheço para se referir a cachopos franzinos (“meu dez-reizinhos de gente”), sintetiza aquilo que me mostraram empiricamente ser a melhor forma de educar: dar as armas para nos podermos lançar ao mundo e trilhar o nosso caminho sozinhos, mas sempre com um apoio nas nossas costas. Canto da Boca encerra uma das mais frutíferas trilogias da canção nacional e permitiu a Sérgio Godinho desbravar caminho para uma nova fase da sua carreira, mas isso já é uma história de outras Coincidências.


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