quarta-feira, 31 de maio de 2023

Sérgio Godinho – Coincidências (1983)


A ideia era fazer de Coincidências um disco de parcerias luso-brasileiras. Acabou por não ser exatamente assim, mas isso pouco importa, quando passados quase trinta anos, continua a ser um disco de referência na carreira de Sérgio Godinho.

Coincidências pretendia ser um grande abraço transatlântico, uma aproximação definitiva ao país irmão. Só que, por vezes, a intenção de quem abraça não se cumpre inteiramente em quem se pretende ver abraçado. Ou, dito maneira mais direta, o longo oceano que existe entre Portugal e Brasil segue ditando, desde há muito, marés que mais separam do que unem esses dois territórios culturais. E as ondas, essas tendem a ser de lá para cá, em quase sentido único. É difícil chegar a esse grande país continental, e são raros os casos em que essa aproximação resultou, de facto. O álbum Coincidências é mais uma história (algo frustrada, diga-se) dessa nobre tentativa.

Havia, depois da boa aceitação do Canto da Boca, uma grande vontade de se fazer um disco de parcerias com músicos brasileiros. A editora PolyGram e o músico portuense estavam definitivamente para aí virados, mas esse desejo cumpriu-se apenas parcialmente. Milton NascimentoJoão BoscoNovelliChico Buarque e Ivan Lins foram os que disseram sim e marcaram presença, mas as desejadas participações de Caetano Veloso e Paulinho da Viola, por exemplo, acabaram por ser apenas ideias não concretizadas. Mesmo assim, de todos os irmãos de sotaque que entraram no álbum, só Ivan Lins registou nele a sua presença vocal, vindo a Lisboa de propósito para gravar. A ideia original pressupunha, essencialmente, letras feitas por esses craques da música popular brasileira, cabendo ao nosso Sérgio a feitura da música. Curiosamente, com Chico Buarque a coisa resultou ao contrário. No entanto, dessa sopa de letras alheias e de melodias próprias, resultaram alguns excelentes temas, como “A Barca dos Amantes” (que mais tarde acabou por ser título de um álbum ao vivo do próprio Milton), “Que Há-de Ser de Nós?” (a tal com participação do autor de “Começar de Novo”, eterno tema de Ivan Lins) e, naturalmente, “Um Tempo que Passou”, a canção com letra de Chico Buarque. Como teriam ficado os temas de Milton e Chico com as suas próprias vozes? Nunca saberemos, mas suspeitamos que muito bem. Pena não ter acontecido.

Das composições de safra inteiramente lusa, há também muito bons momentos em Coincidências. Sérgio Godinho continuava a fazer pérolas afinadíssimas com o seu passado de excelência. Exemplos? Estas, pois claro: “Tantas Vezes Fui à Guerra” e “Não Te Deixes Assim Vestir” (ambas na vertente mais popular que Godinho tantas vezes contemplou na sua obra, especialmente a primeira, que lembra o Fausto do tempo de Por Este Rio Acima, disco saído um ano antes), as elegantes e sóbrias Coisas do Amor I e II (duas letras para uma mesma canção – “As Certezas do Mau Mais Brilhante Amor” e “Não Vás Contar que Mudei a Fechadura”), mas sobretudo “As Horas Extraordinárias”, momento de inequívoca e sublime inspiração. O álbum, aliás, abre com uma espécie de vinheta de quase um minuto de duração deste mesmo tema, apenas com o lindíssimo som do piano de João Paulo, terminando igualmente com a mesma canção, aí já com múltiplos instrumentos e voz. Por falar em voz, em Coincidências o canto de Sérgio Godinho está mais bonito e conseguido do que alguma vez havia estado. É sempre essa a impressão que nos fica a cada audição do álbum.

Por tudo isto, olhar agora para Coincidências faz-nos perceber duas coisas: se é verdade que a intenção inicial do álbum não terá vingado da forma pretendida, por outro lado o disco é um dos mais conseguidos trabalhos de Sérgio Godinho. Letras de excelência, bonitas e eternas melodias, a voz afinadíssima, o que mais se poderá desejar? Mesmo havendo coincidências que não coincidiram como se desejava inicialmente, o álbum aí está, perdurando de forma viva e resplandecente, e com lugar cativo na eternidade dos nossos pequenos-grandes prazeres.


 

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