domingo, 28 de maio de 2023

Sérgio Godinho – Sérgio Godinho canta com os Amigos do Gaspar (1988)


 

Isto não é um disco, é um pedaço de infância. “É Tão Bom” que voltamos para lá.

A minha geração, a que nasceu no pós-25 de Abril, sempre teve um carinho especial por Godinho, dos poucos “velhadas” que sentíamos também como nosso (um pouco como aqueles tios irreverentes que nos emprestam cigarros às escondidas). Mais tarde, alguns de nós chegaram também ao Fausto e ao José Mário Branco (só para falarmos dos melhores dessa fornalha) mas estes últimos nunca conseguiram – ou nunca o quiseram – entrar pela nossa geração adentro. Com o Sérgio sempre foi diferente: quando, em adolescente, rumava à feira da ladra para comprar discos em segunda mão, voltava com mais álbuns seus na mochila do que de grunge ou britpop.

Porque tem Godinho tanto apelo junto da nossa criação? Não sei bem responder mas sei que a ligação afectiva começou cedo, quando este começou a musicar as bonecadas que víamos na televisão, éramos nós ainda crianças. Tinha 8 anos quando “A Árvore dos Patafúrdios” passou na RTP (1985) e dão-se alvíssaras a quem encontrar alguém da minha idade que não saiba trautear o “por incrível que pareça” do genérico.

No ano seguinte, a voz de Godinho voltou a entrar pelas nossas televisões adentro com “Os Amigos do Gaspar” (1986). De início, este lote de canções – com música de Jorge Constante Pereira e letras do Sérgio – pertencia apenas à série de televisão. Até que, em ’88, estando o contrato com a PolyGram prestes a terminar, Godinho decide aproveitar os últimos cartuchos, transportando estas canções para um disco. Tudo é então regravado, fazendo-se ternos duetos com as personagens e colando alguns excertos do programa original.

A criação artística dirigida a crianças cai muitas vezes no vício de infantilizar a forma, subestimando-se o gosto e inteligência da pequenada. O que é interessante neste disco é nunca ceder a qualquer condescendência estética: a música de Jorge Constante Pereira é complexa e dissonante; as letras do Sérgio têm sempre várias camadas de leitura. O gosto educa-se, desde muito cedo, e a minha geração teve o privilégio de alguém ter acreditado em nós.

O texto é deliciosamente subversivo. A autoridade, personificada pelo pouco inteligente guarda Serôdio, é ridicularizada. Ele bem debita regras e regrinhas mas Gaspar e seus amigos fazem dele gato sapato. Farturas, o amigo de Gaspar que representa a ganância e o conformismo, também não tem esperteza em abundância. Saudades do tempo em que a televisão pública passava mensagens anarquistas às crianças…

Hoje tudo são fugidias memórias, de um lugar distante chamado infância, mas se fechar bem os olhos parece que estou lá outra vez, sentado na alcatifa azul (os meus pais tão grandes no sofá grená), cantando com o amigo Gaspar: “é tão bom uma amizade assim, faz tão bem saber com quem contar”…


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