O hyperpop, assim como a vaporwave e outros subgêneros que surgiram em diferentes agrupamentos pela internet, nasce do desejo de ressignificar o passado a partir de uma linguagem tão nostálgica quanto atualizada. São trabalhos marcados pelo uso estilizado das vozes, retorno à estética dos anos 2000, uso da não-binariedade como componente lírico e experimentações que passeiam pelos mais variados campos da música pop. Mesmo que seja possível observar traços desse direcionamento em obras como o homônimo debute do Crystal Castles, Treats (2010), da dupla Sleigh Bells, e ΛΛ Λ Y Λ (2010), da rapper M.I.A., sobrevive no agrupamento entre diferentes nomes da cena inglesa, principalmente aqueles voltados ao selo PC Music, a base para o que seria desenvolvido de forma ainda mais característica ao longo da década de 2010. Artistas como A. G. Cook, SOPHIE, Danny L Harle e Charli XCX que fizeram da linguagem torta incorporada aos próprios registros o estímulo para uma dezena de outros lançamentos. Para ajudar nessa jornada pelo estilo, trago uma lista de 11 discos que considero essenciais para entender o hyperpop e seus inúmeros desdobramentos.
Vários Artistas
PC Music, Vol. 1 (2015, PC Music)
Em um exercício de consolidação da própria estética, os produtores A. G. Cook e Danny L Harle passaram quase dois anos incorporando pseudônimos e assinando composições para diferentes colaboradores, como Felicita, GFOTY e easyFun. O resultado desse intenso processo criativo pode ser observado nas canções da coletânea PC Music, Vol. 1 (2015). Síntese conceitual do repertório apresentado pelo selo britânico em seus primeiros anos de atuação, o registro de dez faixas amplia de forma significativa tudo aquilo que o grupo havia testado meses antes, durante o lançamento da mixtape que reuniu algumas das principais criações do coletivo na DISown Radio (2014). Entre as canções que recheiam o disco, preciosidades como as frenéticas Beautiful, Wannabe e a introdutória Every Night. Nada que se compare ao material entregue em Attachment, já conhecida criação de Hannah Diamond e faixa serve de passagem para o som contemplativo que seria aprimorado por SOPHIE e Charli XCX. Um exercício de apresentação e ponto de partida para tudo aquilo que a PC Music e seus realizadores viriam a desenvolver pelos próximos anos.
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Kero Kero Bonito
Bonito Generation (2016, Double Denim / Sony)
Formado pela cantora e compositora Sarah Bonito e os produtores Gus Lobban e Jamie Bulled, o Kero Kero Bonito fez da combinação entre o j-pop, trilhas sonoras de jogos de vídeo game, rap e elementos do rock alternativo a base para um repertório tão referencial quanto íntimo da cena britânica do período. Exemplo disso pode ser percebido no primeiro álbum de estúdio da banda, Bonito Generation (2016). São pouco menos de 40 minutos em que camadas de sintetizadores e vozes cuidadosamente encaixadas convidam o ouvinte a mergulhar em histórias de amor, sonhos e conflitos típicos de jovens adultos. Perfeita representação desse resultado está em músicas como Break, Lipslap e Trampoline. Fragmentos instrumentais e poéticos que brincam com as possibilidades dentro de estúdio, mas que a todo momento regressam ao pop gracioso do trio, como uma fuga do som testado por outros nomes da cena inglesa no mesmo período.
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Charli XCX
Pop 2 (2017, Asylum)
Charli XCX havia atravessado os primeiros anos de carreira em uma sequência de obras marcadas pela criativa colisão de ideias, ritmos e colaboradores. Contudo, foi com a chegada de Vroom Vroom EP (2016), primeiro registro pelo próprio selo, que artista britânica adotou uma estética bastante característica. São vozes maquiadas pelo uso do auto-tune, ruídos metalizados e batidas tortas, conceito reforçado pelo maior diálogo com A. G. Cook e outros produtores que orbitavam o selo PC Music. Misto de sequência e fina desconstrução de tudo aquilo que a cantora havia testado anteriormente, o registro de apenas quatro faixas serve de passagem para o que viria a se transformar no principal trabalho da artista: Pop 2 (2017). Acompanhada de Carly Rae Jepsen, Caroline Polachek, Tove Lo e MØ, Charli vai de um canto a outro da música pop de forma sempre irregular, brincando com as possibilidades dentro de estúdio. Até Pabllo Vittar aparece para brilhar nos versos de I Got It – “Controlo qualquer um com a minha bruxaria / Minha bunda é mais forte que feitiçaria / Encanta, magia, atiça, vicia“. Entretanto, é na permanente desconstrução de Track 10, faixa de encerramento do disco, que o álbum alcança seu melhor momento. São camadas de sintetizadores, batidas e vozes tratadas como instrumentos, proposta que seria ampliado de forma ainda mais insana nos trabalhos seguintes da cantora.
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SOPHIE
Oil of Every Pearl’s Un-Insides (2018, MSMSMSM / Transgressive)
Junto de A. G. Cook, Danny L Harle e outros realizadores da cena inglesa, SOPHIE estabeleceu grande parte das regras para o pop dos anos 2010. Entretanto, com o lançamento do primeiro e único álbum de estúdio, Oil of Every Pearl’s Un-Insides (2018), a produtora escocesa levou grande parte desses conceitos a um novo patamar. Para além do habitual envelopamento estético e uso irregular das batidas, sobrevive na vulnerabilidade explícita em músicas como It’s Okay to Cry e Is It Cold in the Water? um importante componente de diálogo com o ouvinte. Instantes de parcial recolhimento que antecedem momentos de maior delírio, conceito reforçado pelo experimentalismo de Faceshopping e Ponyboy. É como se a artista transportasse para dentro de estúdio parte das experiências e sentimentos vividos durante o processo de transição de gênero que se submeteu durante as gravações do álbum. Canções que funcionam como uma representação particular de tudo aquilo que existe de mais delicado e estranho no interior de qualquer indivíduo.
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Pabllo Vittar
Não Para Não (2018, Sony Music)
Poucos registros sintetizam com tamanha naturalidade o som produzido nos anos 2010 quanto Não Para Não (2018). Segundo álbum de estúdio da drag queen maranhense Pabllo Vittar, o trabalho que conta com assinatura de Maffalda, Rodrigo Gorky, Pablo Bispo e Zebu, da Brabo Music Team, segue de onde a cantora havia parado um ano antes, durante o lançamento de Vai Passar Mal (2017), porém, estabelece na criativa colagem de ritmos a passagem para uma das obras mais deliciosas da música brasileira em sua fase mais recente. Composições que vão do axé ao R&B, do forró à PC Music sem necessariamente abraçar um gênero ou conceito específico. Instantes em que a artista confessa algumas de suas principais referências, como Beyoncé, RuPaul e Companhia do Calypso, mesmo preservando a própria identidade. O resultado desse colorido catálogo de ideias está na entrega de um repertório que parece pensado para grudar na cabeça do ouvinte. Canções como a agridoce Disk Me (“Diz que me ama quando bebe / Mas quando acorda, se esquece / Desse amor / Que acabou“) e a colaborativa Trago Seu Amor de Volta (“Trago seu amor de volta / Não quero nada em troca / O que o destino uniu, ninguém vai separar“), encontro com Dilsinho, em que parte de desilusões amorosas e conflitos sentimentais como base para a formação das letras. Um misto de romance, dor e provocação, estrutura que se completa pela breve interferência de nomes como Ludmilla (Vai Embora) e Urias (Ouro), mas que utiliza da postura carismática da própria artista como estímulo para uma obra capaz de seduzir o ouvinte da primeira à última faixa. Da imagem de capa aos versos, um disco que reflete o pop em sua forma mais divertida.
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Black Dresses
Love and Affection for Stupid Little Bitches (2019, Independente)
Longe da plasticidade e acabamento eletrônico explícito em grande parte da cena inglesa, as canadenses Ada Rook e Devi McCallion fizeram do Black Dresses a passagem para um território marcado pela permanente quebra dos elementos. Exemplo disso pode ser percebido no terceiro álbum de estúdio da dupla de Toronto, Love and Affection for Stupid Little Bitches (2019). Do momento em que tem início, nas vozes guturais de Static, passando pela entrega de músicas como Bloom, Cartoon Network e My Heart Beats Out Of Time, cada fragmento do disco de nove faixas parece transportar o ouvinte para um cenário completamente novo. Instantes em que as duas artistas vão da música industrial ao noise pop, de Sleigh Bells a Linkin Park de forma deliciosamente insana, conceito que seria explorado até o lançamento do derradeiro Peaceful as Hell (2020). Embora responsáveis por uma sequência de obras recebidas de forma positiva pelo público e crítica, em 2020, a dupla decidiu encerrar as atividades da banda por conta de uma série de ataques transfóbicos cometidos contra McCallion nas redes sociais.
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100 gecs
1000 gecs (2019, Dog Show)
Produto da cultura de internet, madrugadas em frente ao computador e horas de audição de Skrillex, Sleigh Bells, 3OH!3 e Cannibal Corpse, o 100 gecs, dupla comandada por Dylan Brady e Laura Les, fez da criativa fragmentação das ideias a base para cada uma das canções que recheiam o introdutório 1000 gecs (2019). São melodias trituradas, batidas e quebras bruscas, estrutura que se completa pelo uso anárquico dos vocais. Exemplo disso pode ser percebido em algumas das principais músicas do trabalho, como Ringtone, xXXi_wud_nvrstøp_ÜXXx e Money Machine. Canções em que a dupla norte-americana condensa décadas de referências de forma sempre inexata, conceito que seria ampliado com o complementar 1000 Gecs and the Tree of Clues (2020), álbum de remixes que contou com a presença de nomes como Fall Out Boy, Nicole Dollanganger e diversos representantes do selo PC Music. Caótico, 1000 gecs não apenas faria da dupla norte-americana um dos destaques em diferentes publicações, como abriria portas para que Brady trabalhasse na produção de outros artistas, como a rapper Rico Nasty e a própria Charli XCX.
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Dorian Electra
Flamboyant (2019, Independente)
Vozes carregadas de efeitos, sintetizadores e músicas estilizadas. Em Flamboyant (2019), primeiro álbum de estúdio de Dorian Electra, grande parte dos elementos que definem o registro são trabalhados de forma teatral e exageradamente cômica, como interpretação bem-humorada sobre o universo masculino. São versos que discutem o peso do machismo, masculinidade tóxica e a relação de poder exercida pelos homens, porém, de forma sempre provocativa, como um reflexo das inquietações de Electra em relação ao próprio gênero. “Se masculinidade tem a ver com ser corajoso, bravo e forte, então a coisa realmente corajosa e forte a fazer é ser sensível ou aberto sobre suas emoções. Trata-se de redefinir os valores que a masculinidade tradicionalmente mantém em um contexto novo e mais saudável“, respondeu em entrevista à Apple Music. O resultado desse processo está na entrega de faixas como Man to Man, Career Boy e toda uma sequência de outras composições que parecem pensadas para grudar na cabeça do ouvinte, mesmo preservando o tom político da obra.
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Hannah Diamond
Reflections (2019, PC Music)
Um dos principais nomes da PC Music, Hannah Diamond passou grande parte da década de 2010 presenteando o público com uma série de composições marcadas pela profunda entrega sentimental. E foi partindo justamente desse mesmo direcionamento temático que cantora e compositora inglesa deu vida ao primeiro álbum de estúdio em carreira solo, o delicado Reflections (2019). Parcialmente distante do som frenético incorporado por outros representantes do mesmo selo, Diamond se aprofunda na composição de uma obra essencialmente contida. São músicas como Never Again e Love Goes On em que a artista segue de onde parou durante o lançamento de Attachment, anos antes. Claro que isso não interfere na entrega de faixas deliciosamente dançantes, conceito reforçado na segunda metade do trabalho. Do diálogo com a eurodisco, em Concrete Angel, passando pela ambientação nostálgica de Fade Away, cada fragmento da obra reflete a versatilidade e força criativa da artista e seus principais parceiros de composição, A. G. Cook e easyFun.
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Rina Sawayama
Sawayama (2020, Dirty Hit)
Rina Sawayama havia dado uma boa mostra da própria versatilidade durante o lançamento do mini-álbum Rina (2017), casa de músicas como Cyber Stockholm Syndrome, Alterlife e Tunnel Vision. Nada que se compare ao material entregue no sucessor Sawayama (2020). Do momento em que tem início, em Dynasty, até alcançar a derradeira Snakeskin, tudo soa como uma criativa reciclagem de tendências que aponta para diferentes campos da música pop. São ecos de Christina Aguilera, Avril Lavigne, Evanescence e até Limp Bizkit, estímulo para a formação de músicas como XS, STFU! e Comme des Garçons (Like the Boys). Entretanto, é justamente quando se distancia desse universo turbulento e explora os próprios sentimentos que o álbum realmente cresce. Do pop nostálgico que toma conta de Love Me 4 Me e Chosen Family ao lirismo agridoce de Bad Friend, faixa mais delicada do disco, Sawayama estreita a relação com o público por meio de um repertório tão particular quanto íntimo do próprio ouvinte.
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A. G. Cook
7G (2020, PC Music)
Grande nome aos comandos da PC Music e colaborador frequente de SOPHIE, Charli XCX e Danny L Harle, A. G. Cook fez do primeiro álbum em carreira solo um resumo conceitual de tudo aquilo que havia testado nos primeiros anos de atuação. Como indicado no título da obra, 7G, o registro de 49 músicas e quase três horas de duração se divide em sete blocos específicos em que o produtor explora diferentes abordagens criativas. São registros isolados com foco no estudo das batidas, guitarras, vozes, sintetizadores e até releituras para a obra de outros artistas, como Taylor Swift (The Best Day), The Strokes (The End Has No End) e The Smashing Pumpkins (Today). Entretanto, é quando utiliza das próprias emoções e relatos confessionais que o trabalho realmente cresce e chama a atenção do público. Canções como Silver, 2021 e Being Harsh em que Cook alterna entre momentos de maior experimentação, melodias sintéticas e versos sempre acessíveis. Um verdadeiro delírio criativo da primeira à última faixa.
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