Ouvir e consumir música ganhou um significado diferente em 2020. Isolados por conta da pandemia de Covid-19, shows se transformaram em apresentações pela tela do celular, a sala de casa virou pista de dança e muitos trabalhos feitos para serem cantados à plenos pulmões foram sussurrados dentro de nossos quartos. Enquanto alguns discos, produzidos meses antes, pareciam antecipar a melancolia e ambiente caótico de forma quase premonitória, outros serviram como fuga dessa realidade cada vez mais desesperadora. São trabalhos que passeiam pelos mais variados campos da música, confortam, machucam ou simplesmente convidam o ouvinte a dançar. Nesse cenário onde corajosos foram os que decidiram botar suas obras na rua, trago uma lista de registros internacionais que tornaram o ano um pouco mais sustentável.
#50. Yaeji
What We Drew 우리가 그려왔 (2020, XL Recordings)
Longe de qualquer traço de previsibilidade, Yaeji tem feito da criativa desconstrução dos elementos a passagem para cada novo registro autoral. Canções que vão do techno ao R&B em uma linguagem deliciosamente torta, particulr. São fragmentos eletrônicos que se espalham em meio a versos cantados em coreano, ambientações sujas e instantes de doce contemplação, como se do isolamento gerado das gravações em um estúdio montado no próprio quarto, a cantora e produtora nova-iorquina brindasse o ouvinte com um universo de novas possibilidades, estímulo para o material entregue em What We Drew 우리가 그려왔. Menos urgente em relação ao conjunto de faixas apresentadas nos dois primeiros EPs de inéditas, What We Drew 우리가 그려왔 encontra na propositada ruptura estética a base para grande parte das canções. São músicas que utilizam de uma estrutura pré-definida, porém, acabam mergulhando em um precioso labirinto de ideias, como se diferentes obras fossem condensadas dentro de um único registro. Um lento desvendar de temas eletrônicos e experiências particulares que mudam de direção a todo instante, indicativo da completas versatilidade da artista.
#49. Lyra Pramuk
Fountain (2020, Bedroom Community)
Não existe instrumento mais versátil do que a voz humana. E Lyra Pramuk parece entender bem isso. Não por acaso, para o primeiro álbum em carreira solo, a cantora, compositora e produtora norte-americana utiliza do próprio canto como um estímulo para cada uma das sete faixas que recheiam o introdutório Fountain. São sobreposições etéreas, texturas e ambientações sempre detalhistas, precisas, estrutura que se reflete na forma como a artista residente em Berlim assume diferentes identidades criativas a cada nova criação, como um exercício claro do desejo da musicista em brincar com as possibilidades. Colaboradora frequente de outros entusiastas do uso instrumental da voz, como Colin Self e Holly Herndon, essa última, responsável pelo ainda recente Proto (2019), obra em que utiliza de uma inteligência artificial como forma de emular as vozes humanas, Pramuk faz do bem-sucedido debute um ponto de equilíbrio entre o pop e a música erudita. São ambientações melancólicas que se entrelaçam de forma transcendental, estrutura que vai da produção eletrônica ao doce experimentalismo, cuidado que se reflete até a faixa de encerramento do disco, a extensa New Moon.
#48. The Weeknd
After Hours (2020, XO / Republic)
Quem conheceu o trabalho de Abel Tesfaye, o The Weeknd, por conta do sucesso em torno de Can’t Feel My Face, uma das principais músicas de Beauty Behind the Madness (2015), segundo álbum de estúdio do artista canadense, provavelmente deixou passar algumas de suas criações mais sensíveis. Longe do direcionamento comercial que embala os registros mais recentes do cantor e compositor norte-americano, como Kiss Land (2013) e Starboy (2016), sobrevive nos introdutórios House of Balloons (2011), Thursday (2011) e Echoes of Silence (2011), parte da coletânea Trilogy (2012), a passagem para um fino catálogo de ideias e criações intimistas marcadas pela força dos sentimentos. Interessante perceber nas canções de After Hours, quarto e mais recente álbum de estúdio do artista canadense, um parcial regresso ao mesmo território criativo detalhado nos primeiros registros autorais de Tesfaye. Obra de sentimentos, como tudo aquilo que o músico tem produzido desde a entrega do confessional My Dear Melancholy, (2018), trabalho em que canta sobre o fim de relacionamento com a cantora Selena Gomez, o novo disco encontra em memórias de um passado ainda recente o estímulo para um dos projetos mais tocantes do artista.
#47. Ela Minus
Acts of Rebellion (2020, Domino)
De origem colombiana, Ela Minus passou grande parte da adolescência imersa em uma série de projetos relacionados à cena punk/hardcore de Bogotá. Entretanto, com o início da vida adulta e a mudança para os Estados Unidos, onde se dedicou ao estudo da bateria e sintetizadores, a cantora, compositora e produtora sul-americana estreitou a relação com os temas eletrônicos. O resultado desse intenso processo criativo está na entrega de uma série de composições avulsas em que parece testar os próprios limites dentro de estúdio, alternando entre momentos de maior experimentação e faixas que sutilmente conduzem o ouvinte em direção às pistas. Com a chegada do primeiro álbum em carreira solo, Acts of Rebellion, Minus não apenas preserva parte do material entregue em faixas como Ceremony, Juan Sant e Jamaica, como as amplia consideravelmente. Do uso calculado dos sintetizadores, texturas e vozes, passando pelo maior refinamento dado às batidas, cada fragmento do registro produzido e gravado em um estúdio caseiro nasce como um acumulo das experiências vividas pela colombiana. Um criativo cruzamento de ideias que evoca o trabalho de outros nomes recentes da produção eletrônica, como Kelly Lee Owens, mas que em nenhum momento sufoca a identidade da artista.
#46. Charli XCX
How I’m Feeling Now (2020, Atlantic / Asylum)
Em pleno processo de divulgação do colaborativo Charli (2019), obra que contou com a presença de nomes como Christine and The Queens, HAIM e Sky Ferreira, Charli XCX se viu forçada a cancelar todos os compromissos e se trancar em casa por conta da pandemia de Covid-19. Entretanto, sempre prolífica, a cantora e compositora inglesa decidiu aproveitar do período de isolamento para investir em um novo registro de inéditas, How I’m Feeling Now, álbum que preserva a essência do disco entregue há poucos meses, porém, estabelece na melancolia dos versos e inquietações estimuladas pelo próprio distanciamento a passagem para um trabalho de essência documental. “Brilho labial e eu estou parecendo uma estrela / Tenho uma bolsa pequena, mas tenho um grande coração / Na conversa por vídeo, saia fofa e sutiã / Estou me sentindo tão bem, meio que me sentindo uma vadia“, brinca na introdutória Pink Diamond, faixa em que utiliza desse novo jeito de se relacionar à distância como estímulo para a composição dos versos. São letras sempre intimistas e libertadoras, como se uma vez imersa nesse ambiente restrito, a cantora fosse capaz de rever diferentes aspectos da própria vida sentimental, estrutura que se reflete em outros momentos ao longo da obra.
#45. Duval Timothy
Help (2020, Carrying Colour)
O caminho percorrido em Help talvez não seja dos mais convidativos, contudo, está longe de parecer inacessível. Terceiro e mais recente álbum do multi-instrumentista, compositor e produtor Duval Timothy, o registro de essência plural passeia por diferentes campos das artes sem necessariamente abraçar um conceito ou sonoridade específica. São canções produzidas a partir de trechos de áudio enviados por familiares do artista de ascendência serra-leonesa, melodias sofisticadas e instantes de maior improviso, proposta que não apenas reflete a completa versatilidade do músico londrino, como possibilita o diálogo com um time seleto de colaboradores espalhados ao redor do mundo. Co-produzido em parceria com Rodaidh McDonald (King Krule, The xx) e Marta Salogni (Björk, Dream Wife), Help, como o próprio título aponta, é um trabalho que discute saúde mental e autoaceitação a partir do encontro de Timothy com diferentes realizadores em estúdio. Composições sempre pontuadas por depoimentos reais e instantes de maior vulnerabilidade, como se para além do caráter experimental que serve de sustento ao álbum, o músico britânico fizesse das próprias relações um elemento de diálogo com o ouvinte, proposta que se acaba se refletindo durante toda a execução da obra.
#44. Four Tet
Sixteen Oceans (2020, Text)
Desde o início da carreira, a grande beleza da obra de Kieran Hebden sempre esteve na capacidade do produtor em investir na composição de faixas puramente dançantes, porém, marcadas pelo maior refinamento estético. Exemplo disso está em toda a sequência de músicas apresentadas desde o fim da década de 1990, como nas ambientações de Pause (2001) e Rounds (2003), mas, principalmente, nas texturas, inserções pontuais e vozes tratadas como instrumentos em There Is Love in You (2010), registro que não apenas revelou algumas das criações mais delicadas do britânico, caso de Angel Echoes e Love Cry, como transportou o som de Four Tet para um novo território criativo. Curioso perceber em Sixteen Oceans, décimo e mais recente álbum de estúdio do produtor britânico, uma clara continuação do material entregue em There Is Love in You. Do uso destacado dos sintetizadores, passando pela fragmentação das vozes, batidas e captações orgânicas, poucas vezes antes um registro apresentado pelo artista pareceu refletir tamanho esmero. São camadas instrumentais, ruídos e inserções pontuais que parecem feita para serem desvendadas pelo ouvinte, cuidado que se reflete até a econômica Mama Teaches Sanskrit.
#43. Lianne La Havas
Lianne La Havas (2020, Warner / Nonesuch)
Mesmo recebido de forma positiva pelo público e crítica, Blood (2015), segundo disco de Lianne La Havas, não agradou completamente a própria realizadora. “O último álbum, eu o adoro, tenho muito orgulho dele, mas existem aspectos que eu teria feito de maneira diferente“, respondeu em entrevista à Standard. Incomodada com o tratamento dado às canções e o controle excessivo da gravadora – “eu fazia músicas pensando se elas eram boas o suficiente para a gravadora, e não se eram boas o suficiente para mim” –, a cantora e compositora britânica decidiu se distanciar dos palcos e só regressar aos estúdios quando tivesse maior autonomia no processo de composição e segurança em relação à própria obra Não por acaso, Havas levou cinco anos até investir em um novo disco de inéditas. Foi só depois de um recente término de relacionamento que a cantora londrina encontrou o estímulo necessário para investir no terceiro álbum de estúdio da carreira. É justamente essa dor, permanente peso da memória e delicado processo de cicatrização que conduz a experiência do ouvinte durante toda a execução do trabalho. “Chuva agridoce de verão / Eu nasci de novo / Todos os meus pedaços quebrados“, canta na introdutória Bittersweat, música que volta a se repetir nos instantes finais do álbum, reforçando esse aspecto cíclico em torno do autointitulado registro.
#42. No Joy
Motherhood (2020, Joyful Noise Recordings)
Um dos traços mais significativos e talvez problemáticos da nova frente de artistas inclinados a revisitar o som de veteranos do dream pop/shoegaze, como Cocteau Twins e My Bloody Valentine, está na incapacidade de furar o bloqueio das guitarras. São obras sempre soterradas por blocos imensos de distorção, ruídos e efeitos quase caricaturais, como um limitado conjunto de ideias que se repete exaustivamente. Satisfatório perceber nas criações assinadas por Jasamine White-Gluz, do No Joy, um repertório que a todo momento homenageia os clássicos, mas que em nenhum momento utiliza de fórmulas prontas ou se permite trilhar pelo caminho mais fácil. E isso pode ser percebido com naturalidade em cada uma das canções de Motherhood (2020, Joyful Noise Recordings). Quarto e mais recente álbum da artista canadense, o registro co-produzido em parceria com Jorge Elbrecht (Ariel Pink, Wild Nothing), mostra a capacidade de White-Gluz em testar os próprios limites dentro de estúdio. São canções essencialmente versáteis, tortas e concebidas a partir da fina sobreposição dos elementos, como se diferentes obras e abordagens criativas fossem cuidadosamente fragmentadas e remontadas de forma sempre irregular.
#41. Julianna Barwick
Healing Is A Miracle (2020, Ninja Tune)
Consumida pelo peso de antigos relacionamentos e uma série de conflitos pessoais, Julianna Barwick precisava de um lugar para recomeçar. Não por acaso, após o lançamento do eletrônico Will (2016), a cantora e compositora norte-americana decidiu deixar a cidade de Nova Iorque, onde residia desde o início dos anos 2000, para encontrar na região ensolarada de Los Angeles um evidente ponto de transformação dentro da própria carreira. “Eu tive que me afastar desses fantasmas“, respondeu em entrevista ao The New York Times. Vem justamente dessa necessidade em esquecer o passado e secar as lágrimas que se transformaram em pequenos oceanos o estímulo para o quarto e mais recente álbum de inéditas da musicista, Healing Is A Miracle (2020, Ninja Tune). Ponto de equilíbrio entre o pop etéreo que embala o introdutório The Magic Place (2011) e o experimentalismo eletrônico do trabalho entregue há quatro anos, Healing Is A Miracle estabelece na fina sobreposição dos elementos o estímulo para cada uma das oito faixas do disco. Composições montadas a partir de fragmentos de vozes, ambientações etéreas, ruídos e repetições que parecem dançar pela cabeça do ouvinte, convidado a se perder em um universo de emanações cósmicas, sempre sensíveis, conceito reforçado logo nos primeiros minutos do álbum, em Inspirit.
#40. Dehd
Flower of Devotion (2020, Fire Talk)
Talvez você não se recorde, mas entre 2009 e 2011 a cena norte-americana foi dominada por artistas que encontraram em temas litorâneos, ruídos e guitarras deliciosamente nostálgicas a base para uma sequência de trabalhos importantes. São nomes como Girls, The Drums, Wavves, Dum Dum Girls Smith Westerns, Best Coast e tantos outros grupos que surgiram tão rápido quanto desapareceram. Dez anos após esse curioso fenômeno, satisfatório perceber nas canções de Flower of Devotion, terceiro e mais recente álbum de estúdio da banda Dehd, um misto de regresso e criativa desconstrução de todo esse vasto acervo de obras. Concebido em um intervalo de poucos meses, o sucessor do ótimo Water (2019), lançado no último ano, evidencia o completo amadurecimento do trio formado por Emily Kempf, Jason Balla e Eric McGrady. “Corra para se proteger, pois eu estou quebrada / E quando eu vou embora, eu ando sozinha“, canta a vocalista da banda em um precioso exercício de auto-aceitação. São versos curtos, porém, sempre expressivos, como se Kempf, pela primeira vez em mais de cinco anos de grupo, se sentisse realmente à vontade para explorar as próprias desilusões e conflitos intimistas, proposta que dialoga de forma com uma frente cada vez maior de ouvintes.
#39. Jay Electronica
A Written Testimony (2020, Roc Nation)
Dez anos, esse foi o tempo necessário para que Elpadaro F. Electronica Allah, o rapper Jay Eletronica, finalizasse o primeiro trabalho de estúdio da carreira, A Written Testimony. Em atuação desde a segunda metade dos anos 1990, quando ganhou notoriedade na cena de Nova Orleães, o artista que já havia colaborado com nomes como Erykah Badu e Just Blaze, em Act I: Eternal Sunshine (The Pledge) (2007), encontra no presente álbum uma extensão natural de tudo aquilo que havia testado desde o início da carreira. Canções pontuadas por temas existencialistas, debates raciais e versos marcados pela forte religiosidade, proposta que sutilmente amplia tudo aquilo que Allah havia testado em preciosidades como Exhibit A (2009) e Exhibit C (2009). Não por acaso, Jay Electronica inaugura o disco com a atmosférica The Overwhelming Event. Concebida a partir de trechos de um discurso do líder religioso e ativista político Louis Farrakhan, a canção discute a força do movimento negro nos Estados Unidos, repressão e o constante avanço do conservadorismo em uma interpretação quase apocalíptica. Fragmentos de vozes que se espalham em meio a inserções minuciosas de samples, ruídos e ambientações ocasionais, direcionamento anteriormente testado nos antigos trabalhos do rapper, mas que ganha ainda mais destaque no presente disco.
#38. Lido Pimienta
Miss Colombia (2020, ANTI-)
Em 2016, quando Lido Pimienta deu vida ao premiado La Papessa, grande vencedor do Polaris Music Prize de 2017, uma das principais premiações culturais do Canadá, o fenômeno da música latina parecia muito distante do cenário que conhecemos hoje. Longe do sucesso em torno de Despacito, da ascensão de nomes J Balvin e Bad Bunny, ou do aspecto revolucionário em torno da obra de Rosalía, vide o elogiado El Mal Querer (2018), a cantora e compositora de origem colombiana parecia seguir uma trilha isolada, quase solitária, conceito que se reflete na doce melancolia que serve de sustento aos versos e temas instrumentais detalhados de forma sutil ao longo do álbum. Quatro anos após a entrega do registro, interessante perceber nas canções de Miss Colombia, segundo e mais recente álbum de estúdio, a passagem para uma obra que não apenas resgata tudo aquilo que a cantora havia testado no disco anterior, como firma Pimienta como um dos principais símbolos dessa nova identidade latina. Da fotografia de capa, um misto de quinceañera e imagem religiosa, passando pela composição dos versos e seleção dos ritmos, cada fragmento do trabalho encontra na essência da artista um importante componente de transformação.
#37. Lomelda
Hannah (2020, Double Double Whammy)
Entender quem você é, refletir sobre as antigas inseguranças e evoluir a partir delas. Essa parece ser a base do quarto e mais recente álbum de estúdio de Lomelda, Hannah. Com título inspirado pelo nome da cantora e compositora responsável pela obra, Hanna Read, o registro produzido e gravado em um intervalo de poucos meses, durante o período de isolamento social causado pela pandemia de Covid-19, nasce como o trabalho mais intimista e delicado da artista norte-americana. Canções que partem da mente inquieta e traumas da própria realizadora, fazendo dessa delicada reflexão o estímulo para grande parte do disco. “Tenho alguns arquivos antigos, tenho que encontrá-los / Tenho que extraí-los, tenho que sair / Tenho que ficar bem, tenho que dar“, canta na confessional Hannah Sun, música em que reflete sobre memórias de um passado ainda recente, porém, de forma sempre libertadora. Instantes em que a artista original de Silsbee, Texas, atravessa o terreno nebuloso das próprias ideias, fazendo dessa criativa sobreposição dos elementos um curioso componente de diálogo com o ouvinte, convidado a partilhar dos mesmos traumas, relacionamentos fracassados e traumas que invadem o álbum.
#36. Fontaines D.C.
A Hero’s Death (2020, Partisan)
Um ano, duas obras completamente distintas. Em um intervalo de poucos meses após o lançamento do primeiro álbum de estúdio, o elogiado Dogrel (2019), os músicos Grian Chatten (voz), Conor Deegan III (baixo), Carlos O’Connell (guitarra), Conor Curley (guitarra) e Tom Coll (bateria) estão de volta com um novo registro de inéditas do Fontaines D.C.: A Hero’s Death. Livre de urgência e crueza explícita em faixas como Big e Hurricane Laughter, o trabalho produzido por Dan Carey (Franz Ferdinand, Bat For Lashes), parceiro desde o disco anterior, mostra a busca do quinteto de Dublin por uma sonoridade cada vez mais atmosférica e densa, como um complemento ao lirismo existencialista que serve de sustento aos versos. “Eu não pertenço a ninguém / Eu não quero pertencer a ninguém“, canta Chatten na introdutória I Don’t Belong, música que reflete a sensação de deslocamento do eu lírico, apontando a direção seguida pelo quinteto até o último instante da obra. São versos sempre introspectivos, sombrios, como se o músico irlandês deixasse de cantar sobre o cenário urbano que o cerca, vide as paisagens descritivas e referências à cidade de Dublin no primeiro álbum de estúdio, para refletir sobre as próprias inquietações e conflitos particulares. Um misto de dor e permanente busca por libertação.
#35. Special Interest
The Passion Of (2020, Night School / Thrilling Living)
A crueza explícita nos versos de Disco III, música que sucede a introdutória Drama, funciona como um indicativo claro do som incorporado pelo Special Interest em The Passion Of. Segundo e mais recente álbum de estúdio do quarteto formado por Alli Logout (vozes e letras), Nathan Cassiani (baixo), Maria Elena (guitarras) e Ruth Mascelli (produção eletrônica), o trabalho de essência caótica transita por entre ambientações sintéticas, ruídos e paisagens urbanas de forma essencialmente inexata, torta. Instantes em que o grupo original da cidade de Nova Orleães, Luisiana, preserva e ao mesmo tempo perverte tudo o que foi apresentado durante o lançamento do antecessor Spiraling (2018). “Meu corpo sempre foi uma fonte de espetáculo, porque sou gorda, gostosa e as pessoas simplesmente não sabem o que fazer com isso. Eu gosto de desafiar as percepções do que uma pessoa pode ser“, respondeu Logout em entrevista ao Bandcamp. É partindo justamente dessa busca por novas possibilidades que o quarteto orienta a experiência do ouvinte durante toda a execução do trabalho. Composições que partem de uma estrutura pré-definida, porém, estabelecem na permanente desconstrução dos elementos um importante ponto de consolidação da própria identidade criativa do grupo. Em The Passion Of, tudo é permitido.
#34. The Soft Pink Truth
Shall We Go on Sinning So That Grace May Increase? (2020, Thrill Jockey)
Você provavelmente conhece o trabalho de Drew Daniel como uma das metades do Matmos, projeto de experimentalismo eletrônico que ainda conta com a interferência direta de M.C. Schmidt. Entretanto, foi com o The Soft Pink Truth, criado no início dos anos 2000, que o artista californiano revelou ao público algumas de suas principais criações. Do uso de temas dançantes que marcam o introdutório Do You Party? (2003), passando pelas reinterpretações de Why Do the Heathen Rage? (2014), obra em que transporta para as pistas diferentes exemplares do metal extremo, cada registro entregue pelo produtor norte-americano parece mergulhar o ouvinte em um mundo de novas possibilidades. Primeiro registro de Daniel em cinco anos, Shall We Go on Sinning So That Grace May Increase? nasce como um bom exemplo desse resultado. Obra que mais se distancia dos antigos trabalhos do produtor, o álbum que busca inspiração em trechos bíblicos de Romanos 6:1 – “permaneceremos no pecado, para que a graça abunde?” –, utiliza desse aspecto contemplativo, quase religioso, como estímulo para um repertório de essência transcendental. São ambientações minimalistas, ruídos e sobreposições etéreas, leveza que se reflete tão logo o disco tem início, na crescente Shall, e segue até a derradeira May Increase.
#33. The Microphones
Microphones In 2020 (2020, P.W. Elverum & Sun)
“Não existe fim”. O verso repetido em diversos momentos de Microphones In 2020 (2020, P.W. Elverum & Sun), novo de Phil Elverum, diz muito sobre o aspecto cíclico e contínua produção do cantor e compositor original de Olympia, Washington. Primeiro disco de inéditas do músico sob o título de The Microphones em 17 anos, o trabalho de essência autobiográfica costura passado e presente de forma sempre descritiva, crua. São letras detalhistas que atravessam a infância e adolescência, revelam aspectos importantes que levaram o artista a se aprofundar na carreira musical, porém, estabelecem no contraponto amargo e realista da vida adulta um importante componente criativo para a formação de cada elemento. A própria imagem de capa do registro, com Elverum dividido pelo próprio reflexo, funciona como um indicativo claro desses pequenos contrastes e diferentes fragmentos temporais que movem o álbum. Instantes em que o músico norte-americano relembra as primeiras impressões ouvindo artistas como Tori Amos, Red House Painters e Sonic Youth, passa pela morte de Kurt Cobain, quando tinha apenas 17 anos, estabelece pequenos diálogos com o cultuado The Glow Pt. 2 (2001), grande obra do The Microphones, e retorna ao presente cenário, indicando os motivos que o levaram a produzir esse novo disco. Um turbilhão sentimental e poético que conduz a experiência do ouvinte até o último instante do trabalho.
#32. Laura Marling
Song for Our Daughter (2020, Chrysalis / Partisan)
Com exceção do primeiro álbum de estúdio, Alas, I Cannot Swim (2008), Laura Marling parece ter encontrado no uso de temas e conceitos específicos a passagem para cada novo trabalho de estúdio. Foi assim com o lançamento de I Speak Because I Can (2010), obra em que discute o peso do machismo e a repressão sofrida diariamente pelas mulheres; na poesia existencialista de A Creature I Don’t Know (2011), um canto amargo sobre a própria solidão; nos três diferentes atos de Once I Was an Eagle (2013) e, principalmente, no lirismo acolhedor de Semper Femina (2017), registro em que utiliza de sentimentos, medos e vivências compartilhadas por diferentes personagens femininas como estímulo para a composição dos versos. Em Song for Our Daughter, sétimo e mais recente álbum de estúdio da cantora inglesa, a passagem para um novo território criativo. Inspirada pela obra de Maya Angelou (1928 – 2014), Marling utiliza dos versos detalhados ao longo do trabalho como um componente de diálogo com uma filha imaginária. São canções marcadas por conflitos existencialistas, desilusões amorosas e momentos de evidente entrega sentimental, como uma extensão melódica do material entregue pela poetisa norte-americana em uma de suas principais criações, Carta a Minha Filha (2009).
#31. Destroyer
Have We Met (2020, Merge / Dead Oceans)
Difícil olhar para a extensa produção de Dan Bejar na última década e não entender toda a seleção de obras apresentadas pelo artista canadense como parte de um único registro. Do amadurecimento instrumental e poético que embala as canções do atmosférico Kaputt (2011), passando pelo espírito decadente de Poison Season (2015), trabalho em que busca inspiração em grandes musicais da Broadway, elementos do jazz clássico e até nos livros de Clarice Lispector (1920 – 1977), cada fragmento criativo se entrelaça de forma complementar. Composições marcadas pela melancolia dos temas e permanente sensação de isolamento vivida pelo eu lírico, estrutura que ganha ainda mais destaque no soturno Have We Met. Sequência ao material entregue no também referencial Ken (2017), registro inspirado pelas canções de Morrissey, The Cure e outros nomes de destaque da década de 1980, Have We Met é, parta todo os efeitos, um resgate conceitual de tudo aquilo que foi produzido para o Destroyer nos últimos dez anos. Concebido de forma caseira, em meio a captações noturnas na cozinha de Bejar, o álbum encontrou na produção minuciosa de John Collins (The New Pornographers, Tegan and Sara), parceiro de longa data do artista, um importante componente criativo para o fortalecimento da obra. Em um intervalo de mais de três meses, Collins se dedicou a inserir camadas instrumentais, ruídos e pequenas variações melódicas extraídas de sessões descartadas dos antigos trabalhos da banda, como o uso de metais detalhados em Kaput e arranjos de cordas em Poison Season.
#30. Dua Lipa
Future Nostalgia (2020, Warner)
Future Nostalgia não é apenas um disco. São vários. Conceitualmente ancorado no pop dos anos 1980 e 1990, o segundo álbum de estúdio da cantora e compositora britânica Dua Lipa, encontra no aspecto revisionista dos elementos o estímulo para uma seleção de faixas que parecem pensadas para grudar na cabeça do ouvinte. Canções que utilizam da nostalgia não vivenciada da própria artista como estímulo para um repertório que vai dos primeiros anos de Madonna ao som florescente do Blondie, das batidas eletrônicas de Kylie Minogue ao romantismo cômico de Lily Allen, proposta que orienta com naturalidade a experiência do público até a derradeira Boys Will Be Boys. Longe de parecer uma obra inovadora, afinal, não há nada aqui que Taylor Swift já não tenha testado em 1989 (2014) e Carly Rae Jepsen em E•MO•TION (2015), Future Nostalgia encanta justamente pela capacidade da artista em replicar o passado de forma simples e direta. São sintetizadores e batidas cuidadosamente encaixadas dentro de estúdio, minúcia que se reflete tão logo o disco tem início, na autointitulada música de abertura, e segue em meio a canções capazes de rivalizar com alguns dos principais sucessos da cantora, como IDGAF e, principalmente, New Rules, faixa que alavancou Dua Lipa para o topo das principais paradas de sucesso.
#29. Sault
Untitled (Black Is) / Untitled (Rise) (2020, Forever Living Originals)
Mesmo sem qualquer material de divulgação, redes sociais discretas e colaboradores parcialmente ocultos, o coletivo Sault rapidamente se transformou em um novo fenômeno da música inglesa. Sob a regência de Inflo, produtor que trabalhou com nomes como Michael Kiwanuka, Little Simz e Danger Mouse, o coletivo tem feito de cada novo registro de inéditas um precioso resgate conceitual. São canções que passeiam por diferentes fases e tendências da música negra, estrutura que vai da pluralidade de ritmos na década de 1970 ao neo-soul dos anos 1990, de elementos da cultura brasileira ao resgate da ancestralidade africana, estímulo para a formação de obras importantes como 5 (2019) e 7 (2019), apresentadas no último ano. Entretanto, mesmo nesse cenário marcado pela criativa convergência de ideias, olhar curioso para o passado e esmero na formação dos arranjos, sobrevive na recente sequência formada por Untitled (Black Is) [2020] e Untitled (Rise) [2020], um evidente ponto de transformação dentro da curta discografia do coletivo britânico. Duas obras que partem de um mesmo direcionamento estético, linguagem e sonoridade, mas que transitam por caminhos completamente opostos, indicativo da completa versatilidade e busca por transformação de cada realizador dentro de estúdio.
#28. Amaarae
The Angel You Don’t Know (2020, Sad Saints Angry Angels)
Se você olhar para a imagem de capa de The Angel You Don’t Know, estreia de Ama Serwah Genfi, a Amaarae, vai perceber uma colorida colagem de ideias, formas e diferentes estéticas. Propositado ou não, esse é justamente o direcionamento incorporado pela cantora e compositora nova-iorquina durante toda a execução do álbum. São canções que vão do R&B ao rock, do experimentalismo eletrônico ao pop de forma sempre irregular, torta, como se a artista que cresceu em Accra, capital de Gana, transportasse para dentro de estúdio parte das próprias vivências e tudo aquilo que vem testando desde o início da carreira. E isso se reflete logo nos primeiros minutos do trabalho, na sequência composta por D*A*N*G*E*R*O*U*S, Fancy e Fantasy. São pouco mais de seis minutos em que o ouvinte é confrontado pela crueza das guitarras, partilha do mesmo bedroom pop incorporado por nomes como Clairo e Jay Som, e termina mergulhado em um trap latino que poderia facilmente ser encontrado em algum disco recente de Bad Bunny. É como se Amaarae testasse os próprios limites dentro de estúdio, costurando diferentes abordagens conceituais, porém, preservando a própria identidade criativa.
#27. Arca
KiCk i (2020, XL Recordings)
Em KiCk i, a incerteza rege o trabalho de Alejandra Ghersi. Quarto e mais recente álbum de estúdio da cantora, compositora e produtora venezuelana como Arca, o sucessor do homônimo disco de 2017 reflete a imagem de uma artista ainda mais desafiadora, como se cada composição entregue ao longo do registro servisse de passagem para um universo de novas possibilidades. “Um choque de gêneros“, como resumiu em entrevista à Garage Magazine, conceito que se materializa tão logo a obra tem início, na experimental Nonbinary, mas que acaba se refletindo até a faixa de encerramento do disco, No Queda Nada. Sequência ao material entregue há poucos meses, no também delirante @@@@@ (2020), KiCk i nasce como um exercício de autoafirmação e busca por novas possibilidades. Primeiro trabalho de estúdio da cantora após o processo de transição de gênero, o disco nasce como um exercício de reapresentação e fina desconstrução de tudo aquilo que Arca tem revelado desde os primeiros registros autorais, quando colaborou com nomes como Kanye West e FKA Twigs. Pouco menos de 40 minutos em que a artista vai do pop etéreo à música latina, do experimentalismo eletrônico ao rap de forma inexata, como se diferentes obras fossem condensadas dentro de cada composição.
#26. U.S. Girls
Heavy Light (2020, 4AD)
Heavy Light está longe de parecer uma obra fácil. Contraponto curioso ao material entregue no antecessor In a Poem Unlimited (2018), o novo álbum de Meghan Remy como U.S. Girls preserva a essência nostálgica do material entregue há dois anos, conceito reforçado logo nas introdutórias 4 American Dollars e Overtime, porém, se permite avançar criativamente, provando de novas possibilidades, fórmulas pouco usuais e instantes de breve experimentação. São canções que atravessam a música produzida entre os anos 1970 e 1980 para mergulhar em um universo próprio da artista canadense, proposta que orienta a experiência do público até a derradeira Red Ford Radio. Com base nessa estrutura, Remy entrega ao público uma obra que exige ser observada em suas particularidades, como se cada composição exercesse um função específica para o desenvolvimento do disco. Exemplo disso está na sequência formada entre Born To Lose e And Yet It Moves / Y Se Mueve. São pouco menos de sete minutos em que a multi-instrumentista canadense parte do mesmo soul-rock detalhado por David Bowie em Young Americans (1975) para um rock latino marcado pelo forte discurso político, tema central e importante elemento de aproximação entre as faixas do disco.
#25. Adrianne Lenker
Songs / Instrumentals (2020, 4AD)
A música de Adrianne Lenker é dotada de uma capacidade única: a de acolher e confortar o ouvinte. São versos e melodias detalhistas que se entrelaçam de forma a revelar personagens, cenas e acontecimentos de forma sempre sensível. Canções que partem de experiências vividas pela cantora e compositora norte-americana, mas que em nenhum momento deixam de dialogar com ouvinte, reforçando uma constante sensação de familiaridade. Instantes de profunda entrega sentimental e vulnerabilidade aparente, tratamento que se reflete em cada uma das composições que embalam a dobradinha composta pelos delicados Songs e Instrumentals. Concebidos e lançados em conjunto, os trabalhos produzidos entre os meses de abril e maio deste ano mostram a capacidade de Lenker em revelar um material essencialmente amplo, mesmo no reducionismo das vozes e temas instrumentais. São canções que partem de uma base econômica, sempre regida pelo violão rústico da musicista, mas que revelam um catálogo de pequenos detalhes. Instantes em que a vocalista do Big Thief traz de volta tudo aquilo que foi apresentado durante o lançamento de U.F.O.F. (2019), há poucos meses, porém, partindo de um novo direcionamento estético.
#24. Porridge Radio
Every Bad (2020, Secretly Canadian)
Marcado pela força dos versos, Every Bad é uma obra de sentimentos transbordantes. Do momento em que tem início, nas crescente Born Confused (“Obrigada por me deixar / Obrigada por me fazer feliz“), até alcançar a melancólica Homecoming Song (“Eu sou um navio afundando / E não há nada dentro“), faixa de encerramento do disco, cada fragmento do segundo álbum de estúdio do Porridge Radio encontra em desilusões amorosas, medos e conflitos existencialistas de Dana Margolin um importante estímulo para a composição das letras. Canções que beiram o evidente descontrole emocional, sempre intensas, como se tudo fosse delicadamente exposto pela guitarrista britânica. “Minha mãe diz que eu pareço um desastre nervoso / Porque eu roo minhas unhas até a carne / E às vezes eu sou apenas uma criança, escrevendo cartas para mim mesma / Desejando em voz alta que você estivesse morto“, confessa em Sweet, uma das primeiras composições do disco a serem apresentadas ao público e uma clara síntese do material entregue no sucessor de Rice, Pasta and Other Fillers (2016). “Eu estava ouvindo muito o Melodrama, da Lorde, quando escrevi isso. Quando tocamos isso como uma banda, tudo se juntou muito rápido e virou essa música dramática e intensa, alta e tranquila“, respondeu no texto de apresentação da obra, indicando parte das inspirações e da profunda entrega emocional que serve de sustento ao disco. Instantes em que Margolin se revela por completo, fazendo dos próprios conflitos um importante componente de diálogo com o ouvinte.
#23. Kate NV
Room For The Moon (2020, RVNG Intl)
Kate Shilonosova nunca pareceu seguir uma estrutura linear dentro dos próprios trabalhos. Seja no pop empoeirado que marca as canções de Binasu (2016), registro em que dialoga com o som dos anos 1980, ou nas experimentações eletrônicas de для FOR (2018), cada novo álbum entregue pela cantora, compositora e produtora de Moscow parece transportar o ouvinte para um território completamente distinto. Composições que se espalham de maneira inexata, torta, como se diferentes obras fossem condensadas dentro de um único disco, conceito que ganha ainda mais destaque no material apresentado em Room For The Moon. Terceiro e mais recente álbum de estúdio da artista russa, o registro gravado durante um período de “enorme solidão“, amplia de forma significativa tudo aquilo que a cantora tem produzido sob o título de Kate NV. São canções que se relacionam de maneira confessa com a produção russa e japonesa dos anos 1970, evocam o trabalho de veteranos como Laurie Anderson e David Byrne, porém, estabelecem no uso incerto dos elementos a passagem para um universo próprio da musicista. “Eu sempre deixo a música se expressar“, respondeu no texto de apresentação da obra, indicando a fluidez e riqueza de detalhes que serve de sustento ao disco.
#22. Caribou
Suddenly (2020, City Slang / Merge)
Não foram poucos os caminhos trilhados por Dan Snaith em mais de duas décadas de carreira. Do minimalismo que embala as canções do introdutório Start Breaking My Heart (2000), quando ainda se apresentava sob o título de Manitoba, passando pelo experimentalismo torto de Up in Flames (2003), até alcançar a neo-psicodelia de The Milk of Human Kindness (2005) e Andorra (2007), já como Caribou, sobram instantes de evidente acerto, ruptura estética e busca por novas possibilidades dentro de estúdio. Entretanto, foi com a chegada de Swim (2010), casa de músicas como Odessa e Leave House, além, claro, do doce romantismo detalhado em Our Love (2014), que o produtor canadense alcançou sua melhor forma, dialogando com uma parcela ainda maior do público. Interessante perceber em Suddenly (2020, City Slang / Merge), décimo e mais recente álbum de estúdio do artista que também se apresenta como Daphni, uma extensão natural de tudo aquilo que Snaith tem produzido desde o início da década passada. São canções que transitam por entre gêneros e sonoridades sempre distintas, porém, conceitualmente amarradas pela base eletrônica que serve de sustento ao disco. Instantes em que o produtor canadense vai da completa leveza, como na introdutória Sister, com seus sintetizadores e melodias atmosféricas, à força das batidas em Never Come Back, música que parece dialogar com o trabalho de contemporâneos como Four Tet e Hot Chip.
#21. Soccer Mommy
Color Theory (2020, Loma Vista)
A grande beleza da obra de Soccer Mommy sempre esteve na capacidade de Sophie Allison em utilizar de uma instrumentação diminuta como contraponto à força dos sentimentos detalhados em cada verso. Um doloroso exercício criativo que passeia por memórias da infância, relacionamentos fracassados e a constante sensação de isolamento do eu lírico, estrutura que se reflete em algumas das principais faixas apresentadas pela artista durante o lançamento de Clean (2018), caso de Your Dog, Cool e todo o fino repertório que encontra em vivências da musicista um estímulo para a formação das letras. Interessante perceber em Color Theory, segundo álbum de estúdio da guitarrista estadunidense, um delicado ponto de ruptura criativa. Produzido em parceria com o experiente Gabe Wax, produtor que já trabalhou ao lado de nomes como The War On Drugs e Beirut, o registro de dez faixas preserva a essência confessional detalhada no trabalho que o antecede, porém, se permite avançar criativamente, provando de novas sonoridades, melodias atmosféricas e diferentes formas de fazer música.
20. The Chicks
Gaslighter (2020, Columbia)
Quando entrou em estúdio para as gravações de Gaslighter, primeiro álbum de inéditas do Dixie Chicks desde Taking the Long Way (2006), Natalie Maines queria apenas cumprir o contrato com a gravadora, produzir um trabalho simples e ir para casa. Entretanto, estimulada pela série de conflitos pessoais e o turbulento processo judicial que culminou no acordo de divórcio com o ator Adrian Pasdar, com quem esteve casada durante 17 anos, a cantora e compositora norte-americana decidiu estreitar a relação com as parceiras de banda, Emily Strayer e Martie Maguire, e transportar para dentro de cada composição parte das angústias, medo e sentimento de libertação gerado durante esse período tão delicado. O resultado desse intenso processo criativo está na entrega do trabalho mais significativo do grupo, hoje rebatizado de The Chicks, desde o confessional Home (2002). São versos sempre regidos pela força dos sentimentos, vivências e instantes de doce melancolia, proposta que apresentou o trio texano no início dos anos 1990. Não por acaso, Maines inaugura o trabalho com a própria faixa-título do disco. Inspirada pelo conceito de gaslighting, termo usado para descrever a manipulação emocional projetada para que alguém duvide de suas próprias percepções, a cantora detalha o relacionamento abusivo com o ex-marido e a sensação de sufocamento vivida nos últimos anos. “Nos mudamos para a Califórnia e seguimos os seus sonhos / Eu acreditei nas promessas que você fez para mim / Mas você mente“, canta. São versos sempre detalhistas, fortes, estrutura que se completa pelo uso de melodias ensolaradas, como um contraponto à sobriedade das letras.
#19. Yukika
Soul Lady (2020, Dreamus Company)
Em um universo de obras marcadas pelos excessos da produção eletrônica, ruídos sintéticos e vozes estilizadas, Soul Lady, estreia de Yukika Teramoto em carreira solo, assume uma evidente posição de destaque. De origem japonesa, porém, radicada na Coreia do Sul e conhecida pelo trabalho como atriz em diversas produções locais, como novelas, animes e peças de teatro, a cantora e compositora estabelece no primeiro registro autoral a passagem para um território deliciosamente referencial. Instante em que o ouvinte é convidado a reviver o City Pop dos anos 1970 e 1980, estímulo para o material entregue em grande parte da obra. Exemplo disso ecoa com naturalidade logo nos primeiros minutos do disco, na romântica I Feel Love. Passada a introdutória From HND to GMP, canção que norteia toda a produção do disco, Yukika mergulha em um misto de soul, funk, jazz e synthpop que parece pensado para grudar na cabeça do ouvinte. São guitarras sempre suingadas, metais assinados pelo saxofonista Jo Hyung Woo e o trompetista Yoo Seung Cheol, além, claro, da linha de baixo suculenta de Kim Byeong Seok, como um complemento aos versos lançados pela artista. “O vento é tão doce que seu perfume veio antes de você / Sinta-se livre para voar de leve, sem segredo, e venha até mim“, clama.
#18. Bad Bunny
YHLQMDLG (2020, Rimas)
Romances fracassados, noites embriagadas e instantes de profunda entrega sentimental. Em YHLQMDLG – uma abreviação para “Yo Hago Lo Que Me da La Gana“, em português “Eu faço o que quero” –, Benito Antonio Martínez Ocasio, o Bad Bunny, segue de onde parou durante a produção do primeiro álbum de estúdio da carreira, o bem-recebido X 100pre (2018). São versos consumidos pela saudade e o permanente desejo do eu lírico em encontrar um novo amor, estrutura que assume contornos festivos durante a entrega do ainda recente Oasis (2019), colaboração com o colombiano J Balvin, mas que volta a se repetir de forma ainda mais sensível em cada uma das canções que recheiam o presente registro do rapper porto-riquenho. “Vá embora / Ninguém está te segurando e a porta está aberta / Não se preocupe pela gente, nossa história já está morta / Espero que você seja feliz e se divirta / Mas não volte aqui“, canta em Vete, canção escolhida para anunciar a chegada do registro e uma clara síntese de tudo aquilo que Ocasio entrega ao público até a derradeira <3. Um misto de trap, reggaeton e R&B, estrutura que naturalmente aponta para o trabalho de veteranos como Drake, com quem colaborou em Mia, mas que em nenhum momento corrompe a identidade criativa do porto-riquenho, efeito direto do romantismo agridoce que serve de sustento ao disco.
#17. Rina Sawayama
Sawayama (2020, Dirty Hit)
Quem acompanha o trabalho de Rina Sawayama desde o mini-álbum Rina, uma das grandes surpresas de 2017, sabe que a cantora e compositora de origem japonesa segue por vias poucos convencionais. Seja no diálogo com a música produzida nos anos 1980, como em Ordinary Superstar, ou na forma como prova de elementos do R&B, marca de Cyber Stockholm Syndrome e Tunnel Vision, essa última, bem-sucedida colaboração com o cantor Shamir, sobram momentos em que a artista residente em Londres perverte o pop tradicional em prol de um resultado deliciosamente estranho, como a passagem para um território particular. Satisfatório perceber nas canções de Sawayama, aguardado registro de estreia da artista, uma natural extensão desse mesmo conceito criativo. Do momento em que tem início, na teatral Dynasty, até alcançar a derradeira Snakeskin, Sawayama e seu principal parceiro de composição, o produtor Clarence Clarity, costuram três ou mais décadas de referências em um álbum que parece maior a cada nova audição. Canções que vão da PC Music ao nu metal, da eurodisco à ball culture de forma imprevisível, proposta que força uma audição atenta durante toda a execução da obra.
#16. Bartees Strange
Live Forever (2020, Memory Music)
A grande beleza do trabalho de Bartees Strange em Live Forever, primeiro álbum de estúdio do cantor e compositor que cresceu em Mustang, Oklahoma, está justamente em não saber onde ele vai dar. Do momento em que tem início, na introdutória Jealousy, com suas captações de campo e vozes atmosféricas, até alcançar a derradeira Ghostly, música adornada pelo uso de melodias sintéticas e versos semi-declamados, cada fragmento do registro produzido e gravado pelo músico de origem inglesa parece transportar o ouvinte para dentro de um novo território criativo. É como se diferentes obras, experiências sentimentais e referências fossem cuidadosamente escolhidas e encaixadas dentro do disco. E não poderia ser diferente. Nascido em 1989, Strange é um produto de sua época. Uma criança que cresceu bombardeada por estímulos visuais, mas que acabou encontrando na produção musical dos anos 2000, durante a adolescência, um importante alicerce criativo. E isso se reflete com logo nos primeiros minutos do disco, na pulsante Mustang. Enquanto os versos da canção passeiam em meio a memórias da infâncias e questões relacionadas à negritude, musicalmente, o guitarrista confessa algumas de suas principais influências. São ecos de Bloc Party, TV On The Radio e até The Antlers, esse último, homenageado em interpolações com Epilogue, uma das principais faixas do cultuado The Hospice (2009) – “Você está gritando e xingando, eu estou sorrindo, você está me matando“.
#15. Grimes
Anthropocene (2020, 4AD)
Passado, presente e futuro se confundem na estranha narrativa de Miss Anthropocene. Quinto e mais recente álbum de estúdio de Grimes, o trabalho produzido em um intervalo de quase dois anos encontra na imagem de uma “deusa antropomórfica das mudanças climáticas“ o estímulo para um delicado conjunto de faixas em que “cada composição é tratada como uma personificação diferente da extinção humana“, como resume o texto de lançamento da obra. Frações poéticas que vão do aquecimento global ao panteão grego, da inevitabilidade da morte ao domínio de inteligências artificiais, estrutura que faz do presente disco uma resposta sombria ao material entregue no pop colorido do antecessor Art Angels (2015). De fato, do momento em que tem início, em So Heavy I Fell Through the Earth, com seus sintetizadores e guitarras carregadas de efeitos, até alcançar o pop etéreo de IDORU, faixa de encerramento do disco, difícil não pensar em Miss Anthropocene como um ponto de equilíbrio entre o propositado exagero do álbum anterior e as melodias celestiais de Visions (2012). Canções que atravessam o experimentalismo eletrônico para flertar com o rock caricato dos anos 2000, principalmente o nu-metal, gênero que tem sido incorporado pela artista canadense desde o último ano, durante a apresentação da turbulenta We Appreciate Power, parceria com HANA.
#14. Bob Dylan
Rough and Rowdy Ways (2020, Columbia).
Passado, presente e futuro se confundem nas canções de Rough and Rowdy Ways. Primeiro trabalho de inéditas de Bob Dylan desde o contido Tempest (2012), o registro nasce como um resgate meticuloso das histórias e experiências vividas pelo músico norte-americano. São canções que costuram seis ou mais décadas de referências, citações a personagens esquecidos e recordações pessoais compartilhadas pelo artista. Instantes em que o compositor de clássicos como Blowin’ in the Wind, Hurricane e The Times They Are a-Changin utiliza da relação com a morte, memórias e o peso da passagem do tempo como principal componente criativo para o fortalecimento da obra. Não por acaso, Dylan fez de Murder Most Foul, faixa mais extensa do disco, a primeira composição a ser apresentada ao público. São pouco menos de 17 minutos em que o músico parte do assassinato de John F. Kennedy, quando tinha apenas 22 anos, para mergulhar em um universo de pequenas citações que apontam para velhos conhecidos, como The Beatles, Billy Joel, The Who e Fleetwood Mac, além, claro, de eventos importantes, como o festival de Woodstock, trechos de livros, filmes e recortes pontuais extraídos de diferentes campos da cultura norte-americana. Um lento desvendar de ideias e experiências sentimentais, conceito que se reflete não apenas na melancolia dos versos, mas, principalmente, na fina base instrumental que serve de sustento ao disco, sempre detalhista.
#13. Kelly Lee Owens
Inner Song (2020, Smalltown Supersound)
Sonho e realidade se confundem a todo instante nas canções de Inner Song. Segundo e mais recente trabalho de estúdio da cantora, compositora e produtora britânica Kelly Lee Owens, o sucessor do homônimo debute entregue há três anos alcança um ponto de equilíbrio entre as pistas e o lado contemplativo da artista original de Rhuddlan, no País de Gales. São composições que preservam a essência etérea detalhada em músicas como CBM, Anxi. e Keep Walking, porém, partindo de um novo direcionamento estético, estrutura que se reflete não apenas no tratamento dado aos sintetizadores e batidas, como na construção dos versos e uso minucioso das vozes que ganham forma em grande parte das canções. Obra de imersão, como tudo aquilo que Owens tem produzido desde o primeiro trabalho de estúdio, Inner Song, como o próprio título aponta, é um registro que exige tempo e dedicação até se revelar por completo. São canções ancoradas em temáticas existencialistas, a permanente busca por um novo amor, abandono e solidão. Exemplo disso acontece logo nos primeiros minutos do álbum, em On, música inspirada pelo falecimento precoce de Keith Flint (1969 – 2019), integrante do The Prodigy, me que discute a inevitável passagem do tempo e a permanente relação de qualquer indivíduo com a morte.
#12. Fleet Foxes
Shore (2020, ANTI-)
Durante mais de seis décadas, o fotógrafo Hiroshi Hamaya (1915 – 1999) se propôs a registrar diferentes alterações políticas, culturais e ambientais em território japonês e ao redor do mundo. São milhares de fotografias que vão da vida bucólica no interior do país à agitação dos grandes centros urbanos, de paisagens pacíficas cobertas pela neve a cenários consumidos pela força descomunal dos vulcões. Imagens que evocam a sensação de movimento e permanente transformação, conceito que se reflete com naturalidade na capa de Shore, quarto e mais recente álbum de estúdio do Fleet Foxes, onde as cicatrizes de uma geleira em processo de derretimento indicam a multiplicidade de caminhos percorridos por Robin Pecknold durante toda a execução da obra. Primeiro álbum de inéditas do grupo de Seattle desde o material entregue em Crack-Up (2017), Shore é o registros que mais se distancia dos antigos trabalhos da banda – e isso é ótimo. Longe das orquestrações barrocas e músicas que se entrelaçam dentro de um mesmo território criativo, Pecknold garante ao público uma obra de essência diversa, onde cada composição merece ser observada isoladamente. Das vozes femininas de Uwade Akhere e Meara O’Reilly, presentes em grande parte do álbum, passando pelas ambientações jazzísticas e improvisos que surgem em momentos estratégicos do disco, como em Featherweight, poucas vezes antes o Fleet Foxes se permitiu tanto dentro de estúdio. Leia o texto completo.
#11. Run The Jewels
RTJ4 (2020, Jewel Runners / RBC / BMG)
Quando surgiu, no início da década passada, o Run The Jewels parecia ser apenas um encontro temporário entre dois artistas que vinham de uma sequência de grandes obras. De um lado, Killer Mike, com PL3DGE (2011) e o político R.A.P. Music (2012), no outro, El-P, com bem-recebido Cancer For Cure (2012), primeiro registro de inéditas do produtor nova-iorquino depois de um longo período de hiato. Entretanto, a parceria entre a dupla não apenas resultou em um catálogo de grandes obras, como se transformou em um dos projetos mais cultuados e ativos do rap estadunidense. Composições que se espalham em meio a batidas fortes, temas eletrônicos e colaborações com diferentes artistas, proposta que ganha novo resultado nas canções de RTJ4. Primeiro registro de inéditas da dupla em quatro anos, o sucessor de Run The Jewels 3 (2016), mostra Mike e El-P de volta aos trilhos, revelando a mesma força criativa do material entregue em Run the Jewels 2 (2014), um dos grande exemplares do rap norte-americano na última década. Composições que se entrelaçam em uma estrutura frenética, conceito que se reflete tão logo o disco tem início, na já conhecida Yankee And The Brave (ep. 4), mas que acaba orientando a experiência do ouvinte até a música de encerramento do álbum, A Few Words for the Firing Squad (Radiation).
#10. Róisín Murphy
Róisín Machine (2020, Skint / BMG)
Mesmo perto de completar três décadas de carreira, Róisín Murphy segue tão ou mais inventiva do que quando começou o trabalho como cantora, no início dos anos 1990. Em Róisín Machine (2020, Skint / BMG), quinto e mais recente álbum de estúdio da artista em carreira solo, cada composição nasce justamente como um produto da soma de experiências, histórias e sentimentos acumulados pela irlandesa de 47 anos. “Eu sinto que minha história ainda não foi contada, mas farei meu próprio final feliz“, anuncia logo nos primeiros minutos do disco, em Simulation, música originalmente lançada em 2012 e princípio do lento processo de composição ao lado do produtor Richard Barratt, parceiro de longa data e colaborador em cada uma das faixas que recheiam o sucessor de Take Her Up to Monto (2016). Feito para ser absorvido aos poucos, sem pressa, Róisín Machine é uma obra que utiliza do tempo a seu favor. Na contramão de outros exemplares recentes, também inclinadas ao resgate da eurodisco, como Future Nostalgia (2020), de Dua Lipa, e What’s Your Pleasure? (2020), de Jessie Ware, Murphy garante ao público um registro que avança lentamente, seduzindo o ouvinte a cada novo fragmento de voz, batida ou mínimo acréscimo instrumental. São faixas de seis a oito minutos, como se a cantora despisse o disco de qualquer traço de imediatismo em favor de um material que exige não apenas ser consumido, como desvendado pelo público.
#9. Yves Tumor
Heaven to a Tortured Mind (2020, Warp)
De todas as músicas entregues por Yves Tumor durante o lançamento de Safe in the Hands of Love (2018), Noid segue como uma das mais curiosas. Longe do experimentalismo eletrônico que marca grande parte do trabalho, sobrevive na escolha dos samples, instrumentação destacada e uso das vozes a passagem para um universo criativo completamente reformulado. É como se longe da atmosfera densa detalhada nos introdutórios When Man Fails You (2015) e Serpent Music (2016), o cantor, compositor e produtor norte-americano entrasse no rock dos anos 1970 o estímulo para um novo direcionamento estético, proposta que ganha ainda mais destaque nas canções de Heaven to a Tortured Mind (2020). Registro mais acessível e desafiador do músico de Miami, o trabalho que conta com produção assinada por Justin Raisen (Angel Olsen, Kim Gordon), mostra a capacidade de Sean Bowie, grande responsável pelo projeto, em transitar por diferentes possibilidades temáticas, porém, preservando a própria identidade criativa. Exemplo disso está na introdutória Gospel For A New Century, música que parte de trechos de 이송아, da sul-coreana Lee Son Ga, para mergulhar em um universo de vozes complementares, ruídos e batidas cíclicas, como uma extensão do som apresentado em Noid.
#8. Waxahatchee
Saint Cloud (2020, Merge)
Quando deu vida aos primeiros trabalhos como Waxahatchee, caso de American Weekend (2012) e Cerulean Salt (2013), Katie Crutchfield parecia simplesmente seguir a fórmula de outros nomes recentes da cena norte-americana, mergulhando de forma nostálgica no rock produzido entre o final dos anos 1980 e início da década de 1990. Um misto de passado e presente, reverência e fino toque de transformação que embala algumas das principais faixas entregues pela cantora e compositora estadunidense durante o período, caso de Coast to Coast, Dixie Cups and Jars e Be Good. Entretanto, com a chegada de Ivy Tripp (2015) e sequência formada entre Out in the Storm (2017) e Great Thunder EP (2018), a sonoridade adotada pela artista do Alabama passou a ser outra. Composições que atravessam os habituais blocos de ruídos levantados pela multi-instrumentista para mergulhar no cancioneiro dos anos 1970. O mesmo olhar curioso para o passado, porém, partindo de um novo direcionamento estético, proposta que ganha ainda mais destaque nas canções do saudosista Saint Cloud, quinto e mais recente álbum de estúdio de Crutchfield.
#7. Chloe x Halle
Ungodly Hour (2020, Parkwood / Columbia)
Mesmo repleto de boas composições, como Down e Warrior, o excesso de colaboradores e a produção turbulenta fez do introdutório The Kids Are Alright (2018), uma obra que mais parecia formatar do que preservar a identidade criativa das irmãs Chloe e Halle Bailey. Longe do minimalismo dos arranjos e uso destacado da voz, conceito proposto na mixtape The Two of Us (2017), a dupla acolhida por Beyoncé decidiu se aventurar em estúdio, proposta que talvez não tenha agradado aos antigos seguidores das artistas de Atlanta, mas que alcança um precioso ponto de equilíbrio nas canções que embalam o maduro Ungodly Hour. Misto de sequência e fina desconstrução do material entregue nos últimos registros de inéditas, o trabalho concentra o que há de melhor nesses dois universos criativos. De um lado, composições de essência comercial, como se pensadas para dialogar com uma parcela cada vez maior do público. No outro, o evidente comprometimento estético e entrega de cada integrante, estrutura que não apenas se reflete na escolha da dupla em assinar grande parte da produção das faixas, como, principalmente, em transportar para dentro de estúdio um delicado conjunto de experiências sentimentais. São versos sempre intimistas, fortes, conceito detalhado tão logo o álbum tem início, na atmosférica música de abertura (“Nunca peça permissão / Peça perdão“), mas que acaba orientando a experiência do ouvinte até o último segundo do disco.
#6. Haim
Women in Music Pt. III (2020, Columbia)
Women in Music Pt. III é uma obra sobre libertação. Da construção dos versos, sempre marcados pela temática do empoderamento, passando pela busca por novas possibilidades criativas dentro de estúdio, cada fragmento do terceiro e mais recente álbum de inéditas do Haim reflete o esforço das irmãs Danielle, Este e Alana em ressignificar o próprio trabalho. São canções momentaneamente consumidas por memórias de um passado ainda recente, porém, inspiradoras, fortes, produto do esforço coletivo de cada integrante da banda e seus parceiros de produção, os músicos e colaboradores de longa data Rostam Batmanglij (Vampire Weekend, Carly Rae Jepsen) e Ariel Rechtshaid (Sky Ferreira, Charli XCX). “Todo o mantra desse registro é sobre ser destemida. Sinto que muitas vezes essa voz passa pela cabeça dizendo: ‘tenha medo, tenha medo, pare, pare, pare’. Com esse disco, desligamos essa coisa. Se isso acontecer com uma de nós, eu tenho duas irmãs que dizem: ‘continue’“, respondeu Danielle em entrevista à NME. É partindo justamente desse espírito de união entre o trio que os temas explorados ao longo do trabalho ganham novo significado. São versos que discutem isolamento, medo e depressão a partir do desejo de mudança e busca por superação. “E eu tenho tentado encontrar o meu caminho de volta … Levou tanto tempo / Caí / Agora estou nele“, canta em Now I’m In It, uma das primeiras composições a serem apresentadas ao público e uma clara síntese de tudo aquilo que o grupo busca desenvolver ao longo da obra.
#5. Moses Sumney
Grae (2020, Jagjaguwar)
Moses Sumney já havia dado uma boa mostra do próprio trabalho como lançamento de Aromanticism (2017). Um misto de soul, rock e pop de câmara que passa por diferentes campos da música de forma sempre sensível, estrutura que se reflete em algumas das principais faixas do disco, como Lonely World e Make Out in My Car. Composições que refletem a capacidade do cantor e compositor norte-americano em transformar as próprias experiências, desilusões amorosas e desejos na base para cada novo registro autoral, proposta que não apenas ganha novo significado nas canções de Grae, segundo e mais recente álbum de estúdio, como reflete o completo domínio criativo e entrega do artista californiano. Como indicado logo nos primeiros minutos do trabalho, na introdutória Insula, Grae se revela ao público como uma obra sobre isolamento e autodescoberta. “‘Isolamento’ vem da ‘insula’, que significa ‘ilha’“, repete a voz da poetisa Ayesha K. Faines, indicando parte da temática adotada por Sumney. São versos mergulhados em temas existencialistas, medos e conflitos particulares que vão da própria masculinidade, em Virile, às relações humanas, em In Bloom, estrutura que não apenas preserva, como sutilmente amplia o repertório detalhado no disco anterior. Canções que partem da mente inquieta do próprio artista, porém, pensadas para dialogar com os sentimentos de qualquer indivíduo.
#4. Perfume Genius
Set My Heart on Fire Immediately (2020, Matador)
Mike Hadreas tinha quase 30 anos quando decidiu largar tudo e se dedicar integralmente à carreira como músico. Na contramão de outros nomes que surgiram no mesmo período, ainda imberbes, o artista residente na região de Seattle acumulava um longo histórico de ameaças de morte sofridas por conta de sua sexualidade, problemas de saúde causados por uma doença inflamatória, crises familiares e um caso de espancamento organizado por um grupo homens no bairro onde morava. Talvez por isso, a voz do cantor e compositor norte-americano se revele de maneira tão carregada logo após o breve respiro dado nos minutos iniciais de Whole Life. “Metade de toda a minha vida se foi“, reflete de forma melancólica, apontando a trilha contemplativa seguida durante toda a execução de Set My Heart on Fire Immediately. Quinto e mais recente álbum do músico estadunidense, o sucessor do elogiado No Shape (2017), nasce como uma interpretação de Hadreas sobre diferentes aspectos da própria carreira, relacionamentos e conflitos pessoais. Instantes em que o artista se despe por completo e utiliza do lirismo autobiográfico como forma de dialogar com o ouvinte. “Você pode descrevê-los para mim? / Você pode apenas encontrá-lo para mim?“, clama na delicada Describe, composição em que sufoca pela peso da depressão e problemas de saúde, porém, anseia pela felicidade e a busca por um novo começo, dualidade que se reflete até o último instante da obra, como um passeio pela mente inquieta do cantor.
#3. Jessie Ware
What’s Your Pleasure? (2020, PMR / Friends Keep Secrets / Interscope)
Qual é o seu prazer? A pergunta levantada por Jessie Ware funciona como um indicativo do ambiente dominado pelas sensações que a cantora e compositora inglesa busca desvendar ao longo do quarto e mais recente álbum de estúdio da carreira. Declaradamente inspirado pela obra de veteranos da década de 1970 e 1980, como Diana Ross, Chic e Change, What’s Your Pleasure? estabelece na composição das batidas, melodias e vozes um precioso diálogo com o passado. Canções marcadas pela essência nostálgica dos arranjos e temas instrumentais, porém, sempre tratadas de forma autoral, proposta que naturalmente distancia a artista de uma previsível reciclagem de tendências. Pronto para as pistas, como uma fuga do pop contido que embala as canções do antecessor Glasshouse (2017), o registro que conta com a co-produção de James Ford (Arctic Monkeys, Foals), Joseph Mount (Robyn, Metronomy) e Benji B (Kanye West), diz a que veio logo nos primeiros minutos, em Spotlight. São pouco menos de seis minutos em que cada componente da faixa se revela ao público em uma medida própria de tempo, minúcia que vai do encaixe das batidas e vozes, passa pelo uso dos sintetizadores nostálgicos, arranjos de cordas e linha de baixo suculenta, pontuando o ritmo da canção. “E se um toque é apenas um toque, então um toque não é suficiente / Diga o que isso significa, diga que você está apaixonado“, provoca, como se convidasse o ouvinte a dançar.
#2. Phoebe Bridgers
Punisher (2020, Dead Oceans)
Phoebe Bridgers sempre foi uma especialista em narrar boas histórias. Da estreia com Stranger in the Alps (2017), passando pelos colaborativos boygenius EP (2018), encontro com as amigas Julien Baker e Lucy Dacus, e Better Oblivion Community Center (2019), parceria com Conor Orbest, sobrevive na poesia descritiva, conflitos sentimentais e desilusões amorosas o estímulo para grande parte das canções assinadas pela cantora e compositora norte-americana. Registros que partem de emoções, medos e vivências reais, como uma coletânea de contos musicados, proposta que ganha ainda mais destaque no segundo e mais recente álbum de estúdio da musicista californiana, o confessional Punisher. Cuidadosamente trabalhado em estúdio, o álbum que conta com co-produção de Tony Berg (Andrew Bird, Beck), Ethan Gruska (Perfume Genius, John Legend) e da própria cantora, amplia de forma significativa tudo aquilo que Bridgers havia testado no disco anterior. Canções marcadas pelo refinamento acústico, orquestrações sempre detalhistas e incontáveis camadas instrumentais. De fato, é necessário tempo até absorver todos os elementos, ambientações e vozes que correm ao fundo da obra. Um lento desvendar de ideias e experiências sentimentais que parece dançar na cabeça do ouvinte, como uma valsa lenta, sem pressa.
#1. Fiona Apple
Fetch the Bolt Cutters (2020, Epic)
Quando foi a última vez que sentimos tamanho impacto com o lançamento de um disco? Na chegada de My Beautiful Dark Twisted Fantasy (2010), de Kanye West? Talvez. Quando Beyoncé pegou muita gente de surpresa com o autointitulado registro visual? Pode ser. Nas rimas impressas por Kendrick Lamar, em To Pimp a Butterfly (2015), e Frank Ocean, em Blonde (2016)? Provavelmente. Quinto e mais recente álbum de estúdio da cantora e compositora norte-americana Fiona Apple, Fetch the Bolt Cutters é, como esses e outros trabalhos importantes que surgiram na última década, um registro que já nasce clássico. Impactante do primeiro ao último verso, a obra encontra na força dos sentimentos detalhados pela pianista estadunidense a base para uma seleção de faixas que alterna entre o desequilíbrio pessoal e a permanente busca por autoaceitação. Sequência ao doloros The Idler Wheel Is Wiser than the Driver of the Screw and Whipping Cords Will Serve You More than Ropes Will Ever Do (2012), um dos registros mais viscerais que surgiram na última década, Fetch the Bolt Cutters cresce como um produto das experiências, conflitos intimistas e traumas acumulados pela cantora nova-iorquina desde a estreia com Tidal (1996). “Eu sou a mulher que quer que você ganhe / E eu estava esperando / Esperando você para me amar“, canta para si mesma, em I Want You to Love Me, faixa que aponta a direção seguida até o último instante da obra, em On I Go. São composições de essência caótica, sempre autobiográficas, conceito reforçado logo nos primeiros minutos do disco, em Shameika, faixa em que parte da agressão sofrida na infância como estímulo para uma série de desajustes na vida adulta – “Shameika não era gentil e ela não era minha amiga, mas / Ela chegou até mim e nunca mais a verei … Shameika disse que eu tinha potencial“.
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