Amazing Grace não é apenas um dos mais soberbos discos ao vivo que alguma vez foram gravados. É um milagre sob a forma de canções.

Os milagres acontecem. Claro que podemos (e devemos) levantar questões sobre a possibilidade de um carpinteiro nazareno ter andado sobre a água, curado leprosos ou restituído uma orelha decepada a um soldado romano. Mas há milagres que simplesmente não podemos negar. A existência de Aretha Franklin é uma dessas maravilhas divinas que são inegáveis e o concerto gravado em 1972 na New Temple Missionary Baptist Church, em Watts, Los Angeles, a única prova de que Tomé precisaria para crer.

Em 1972 Aretha já tinha editado três dos mais importantes álbuns da soul norte-americana: I Never Loved a Man the Way I Love You (1967), Lady Soul (1968) e Aretha Now (1968) e era uma estrela daquelas que podia esgotar qualquer sala de espectáculos dos EUA. Então o que a levou a, naquele ano, dar um concerto mais íntimo numa igreja que levava umas poucas centenas de pessoas? Bem, é ouvir. Aretha está no seu ambiente a cantar as canções de louvor a um deus e a uma ideologia que amava.

Ao contrário de maior parte dos seus discos até então, Amazing Grace é um disco que deve mais ao gospel do que à soul, se bem que é impossível dissociar um do outro. Mas neste disco não há lugar para canções como “Respect”, “(You Make Me Feel Like) A Natural Woman”, ou a espantosa “Groovin’”. Temos sim interpretações espantosas de velhos espirituais negros e uma ou outra versão de alguns cantores como a deslumbrante “You’ve Got a Friend” de Carole King ou a mais que magnífica e sublime “Wholy Holy” de Marvin Gaye.

Não há aspectos instrumentais que fiquem particularmente no ouvido, apesar de haver sempre um baixo pungente, um órgão vibrante e uma percussão reforçada pelas palmas sincronizadas do coro e da audiência. Mas o destaque vai integralmente para Aretha, a voz no início, no meio e no fim do túnel deste concerto. É ela que nos comove, é a voz dela que nos faz arrepiar os pêlos do braço, é ela que move os elementos do coro e da plateia a levarem as mãos à cabeça, incrédulos perante aquele milagre que se revelava à sua frente. A versão de “Amazing Grace” gravada neste disco é um dos mais poderosos momentos da música ocidental e capaz de fazer até o mais empedernido dos ouvintes comover-se e o maior dos ateus agradecer a benção de haver religião no mundo.

O disco em si é todo um tratado de bem cantar, de bem sentir, de arrebatamento de todo e qualquer sentimento. Mas igualmente marcante é o filme que chegou aos nossos olhos em 2019. Nele, podemos assistir a um momento em que o reverendo James Cleveland – o diretor musical de Aretha que a terá visto em concerto dezenas de vezes até àquela data – quebra em pranto, esmagado pelo milagre que testemunhava naquela igreja baptista no coração de Los Angeles.

Mas Amazing Grace não é só devoção pia. É agradecimento enérgico. São os balanços de corpo dos Southern California Community Choir, é a alegria e vontade de dançar dos presentes na plateia (incluindo uns jovens Mick Jagger e Charlie Watts) e o rio de suor que escorre pela fronte de Aretha e que o pai se levanta para ir limpar a meio do concerto.

Em 1972 Aretha já tinha cantado pelos afro-americanos enviados algures para o sudoeste asiático para matar tipos que nunca lhes tinham feito mal algum (“I Say a Little Prayer”), pelo respeito para com “a pessoa mais negligenciada na América: a mulher negra” (“Respect”) e era uma das mulheres na linha da frente pela luta dos direitos pelo qual ainda hoje milhões de negros têm de lutar, seja nos EUA, em Portugal ou na China. Mas em 1972 entrou na igreja para cantar os seus agradecimentos a uma graça divina e gravar um dos discos mais bonitos deste mundo (e do outro). É talvez o único milagre de sempre gravado em disco e em filme.

Que a maravilhosa graça de Aretha esteja sempre connosco. Ámen.