O álbum de rock’n’roll dos fifties mais consistente e electrizante. Punk antes do punk. Glam antes do glam.
A loucura do rock’n’roll varreu a América em meados dos anos 50, e ainda hoje a pop se expande com o impulso deste big-bang inicial. Mais do que uma nova estética (um blues frenético e dançável, com tempero country opcional), o rock’n’roll é uma nova realidade social: a primeira vez em que os adolescentes têm uma música só sua (que os pais não gostam, nem compreendem); a primeira vez em que música oriunda de franjas marginalizadas (negros, latinos, brancos pobres do sul) extravasa os seus pequenos nichos e toma de assalto o mainstream; e a primeira vez em que brancos e negros dançam juntos ao som da mesma música sensual (a tragédia! o horror!).
Esta revolução na cultura e nos costumes gerou um enorme escândalo na sociedade conservadora de então, receosa da sua carga sexual e da mistura racial que ela poderia trazer. Se essa sexualidade estava implícita no piano gingão de Fats Domino, nos movimentos de ancas de Elvis ou na guitarra extravasante de Chuck Berry, em Little Richard não há subentendidos, o sexo está escancarado: nas letras, na voz de fogo, nos gritos animais. A cereja em cima do bolo é a sua imagem camp e andrógina, glam rock antes do tempo, tornando a sua sexualidade ainda mais transgressiva. Os ambíguos Bowie, Bolan e Prince seriam alguns dos seus distintos herdeiros.
Bill Haley foi um dos pais do rock’n’roll mas a sua versão do rhythm and blues era ainda muito contida e inofensiva. Elvis é um caso diferente: quando em ’54 “That’s all right, mamma” passa na rádio, ninguém em Memphis sabia se aquela voz cheia de swag era de um branco ou de um negro. Mas faltava ainda algo realmente perigoso, uma pedrada no charco, uma revolução em dois minutos. Apareceria em Outubro de’ 55, com o single “Tutti Frutti” de Little Richard, gravado na efervescente Nova Orleães. Elvis pode ser um dos intérpretes mais brilhantes do século XX, ninguém o questiona, mas quando nos seus dois primeiros discos revisita temas de Little Richard não consegue igualar a temperatura escaldante dos originais.
Seguem-se outros singles, cada vez mais frenéticos, de “Long Tall Sally” a “Rip It Up”, um festim de ritmo e rebeldia. Em 1957 sai o seu primeiro LP, Here’s Little Richard, uma colecção de singles e lados B, como era apanágio na época. Temos muito carinho pelos primeiros discos de Elvis, Chuck Berry ou Buddy Holly, mas nenhum álbum de rock’n’roll dos anos 50 é tão consistente e electrizante como o primeiro de Little Richard.
A velocidade é estonteante e o groove tremendo, as sementes do funk do futuro. O sobe e desce do baixo (boogie-woogie!) põe até a malta dos cuidados intensivos a dançar. A bateria faz “ch-ch-ch-ch-ch-ch-ch-ch”, como o comboio de infância que estremecia a sua casa, e que agora estremece os alicerces da velha sociedade. O saxofone sola, vibrante, com a mania que é uma guitarra eléctrica; e a mão direita de Little Richard batuca com fúria nas teclas do piano, com a mania que este é uma bateria. Porém, a sua voz cheia de grão e fagulha domina sobre tudo o resto, a mais negra das vozes negras, onde Otis Redding e James Brown foram buscar tudo.
No mesmo ano, no auge da fama, Little Richard abandonaria os palcos profanos para ingressar na Igreja, o primeiro dos pais fundadores a sair de cena. A sua rebeldia, porém, é eterna porque ela é o próprio espírito do rock’n’roll. No glam, no punk, no metal, no rock que ainda está por vir, a transgressão nasce sempre do mesmo grito primal: a-wop-bop-a-loo-bop-a-wop-bam-boom!
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