Ao quarto disco, os portugueses Asimov fazem o seu melhor trabalho: selvagem, psicadélico e tribal. Para aplacar os maus espíritos do tempo, pendurando cabeças humanas em paus.
Entre o psicadelismo do summer of love e o heavy metal do final dos anos 70, houve um elo perdido, o chamado heavy psych, onde bandas como os Sabbath e os Hawkwind usavam riffs pesados e arrastados como novo dispositivo de transe e alucinação (mais bad trips do que peace and love, mais preto e branco do que technicolour). O género nunca se extinguiu inteiramente, pois a cada década houve sempre novos flower punks que expressaram o seu repúdio contra a modernidade refugiando-se neste mítico passado. Nos anos 90, houve mesmo uma movida revivalista com nome próprio, o stoner rock, que no fundo mais não era do que uma releitura do heavy psych original.
Ora os portugueses Asimov são ilustres herdeiros desta tradição “setenteira”. Começaram como um duo à White Stripes: Carlos Ferreira na guitarra e voz, João Arsénio na bateria. Hoje são um power trio, com o baixo de Rodrigo Vaz a encorpar a secção rítmica. Mas para o seu quarto disco, o bonito Flowers, enriqueceram ainda mais a sua paleta de texturas, convidando Joana Guerra para o violoncelo e Peter Wood para a segunda guitarra (o tal Hidden Circus desenhado a pó de giz). O contraste entre o fuzz sujo e granulado das guitarras e o límpido violoncelo é um dos segredos deste disco, a mais densa escuridão alumiada por bonitos fios de esperança.
Se um certo exotismo tribal sempre esteve implícito nos Asimov, agora essa transe xamã está no cerne da sua estética. Ouvem-se percussões chamando as almas dos mortos, e mesmo a bateria soa a batuque pagão e ancestral. Escalas pentatónicas confirmam este travo étnico, talvez um reflexo de uma Lisboa cada vez mais cosmopolita, onde a cada esquina se ouve música vinda dos lugares mais longínquos. Não se subestime também os efeitos de uma dieta rigorosa à base dos mais excêntricos vinis, onde o psicadelismo sueco e o rock da Zâmbia serão, porventura, as referências menos obscuras. É a própria banda que nos confessa: se há uma droga a guiar o seu processo criativo, ela é a própria música.
A electricidade é dominante em Flowers, a teia de postes e cabos eléctricos riscando a cidade de betão. Mas mesmo nos subúrbios mais cinzentos, há sempre um pássaro a chilrear numa nesga de verde, o suficiente para algumas guitarras acústicas à Led Zeppelin III assomarem no disco.
Os riffs continuam no centro de tudo, prepotentes como um primeiro-ministro absolutista. A melodia da voz é um elemento acessório, totalmente esmagado pela imponência dos riffs. A sua repetição arrastada entorpece-nos o corpo e turva-nos o espírito. É então que as almas penadas nos visitam, clamando pelos mais terríveis sacrifícios.
O vanguardismo de Flowers advém do seu brutal primitivismo. O desdém pelo formato-canção, o ódio ao refrão, a rudeza lo-fi da distorção, a simplicidade radical dos seus riffs, a transe pela repetição, tudo evoca um passado selvagem onde a razão ainda não chegou. Ao abrirmos os telejornais, uma pergunta se impõe: estaremos assim tão longe dele?
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