quinta-feira, 3 de agosto de 2023

Milton Nascimento – Sentinela (1980)


Sentinela é um belíssimo depoimento sobre a vida, sobre todos os seres humanos, sem quaisquer distinções. Um disco que aponta para um tempo de esperança em que os homens serão felizes como se fossem meninos.

Os anos 80 começaram da melhor maneira para Milton Nascimento. Sentinela é uma obra como poucas.
Vibrante, intensa, política sem ser panfletária, humanista, libertária nos propósitos que encerra, poética, miltoniana até à medula. É um disco bondoso, embora trate igualmente de assuntos como a guerra e a solidão. Digo “bondoso” porque nele encontro propósitos que vão nesse sentido. As coisas duras que diz, as coisas que são cantadas, não arrastam raiva, muito menos ódio. Parecem, isso sim, tentar uma qualquer reconciliação interior, mas também com o mundo. Talvez só eu o entenda deste jeito, mas dele tenho esta opinião bem vincada. Celebra, no entanto e acima de tudo, a amizade entre os seres humanos de todas as raças e de todas as línguas, daí um dos seus pontos de grandes interesse e atualidade. Milton Nascimento, a pessoa e o artista, espelham bondade e gentileza desde sempre, e são já muitos os anos em que tudo isso se prova, tanto na obra discográfica como nas rotinas dos dias e da vida.

Ainda hoje acho que Sentinela é o melhor presente que pode ser dado a um amigo. Mais do que um disco, Sentinela é um hino que se ouve e nunca mais se esquece. Um hino de uma pátria diferente de todas as outras pátrias que dividem, mais do que unem. Canções como «Peixinhos do Mar», «Tudo», «Sueño Con Serpientes» (com a arrepiante participação de Mercedes Sosa), «Sentinela» (com a voz de Nana Caymmi a elevar-nos a alturas pouco imagináveis), «Caicó», «Itamarandiba» e «Um Cafuné na Cabeça, Malandro, Eu Quero Até de Macaco» fazem de Sentinela outro dos discos da minha vida. Por isso, e ao contrário do que seria suposto num texto deste tipo, resolvi assumir a primeira pessoa discursiva. O plural ficaria aquém do pretendido. Este é um dos meus discos, e esse sentido de posse não se esgota, naturalmente, em si mesma. Pertence-me de todas as formas e maneiras, faz parte de mim. Por isso, Sentinela é um disco que perdura dentro do corpo, depois de ouvido. Traz palavras de uma beleza inaudita, como as do seu tema mais emblemático, a incontornável «Canção da América»: «Amigo é coisa para se guardar / No lado esquerdo do peito / Mesmo que o tempo e a distância digam “não” / Mesmo esquecendo a canção / O que importa é ouvir / A voz que vem do coração». Relembro, por outro lado e ainda as palavras de «Itamarandiba», que evocam o conhecido poema de Carlos Drummond de Andrade. A canção começa assim: “No meio do meu caminho / Sempre haverá uma pedra / Plantarei a minha casa / Numa cidade de pedra” e termina dizendo que «No caminho dessa cidade as mulheres são morenas / Os homens serão felizes como se fossem meninos». É também esta a mensagem que fica depois de ouvirmos este álbum, uma das mais belas e intrigantes gravações feitas nos mais de 50 anos de carreira de Milton Nascimento.

Sentinela tem, no seu encarte interior, algumas palavras de Bertolt Brecht. Dizem assim: “Hay hombres que luchan un día y son buenos. / Hay otros que luchan un año y son mejores. / Hay quienes luchan muchos años, y son muy buenos. / Pero los hay que luchan toda la vida: esos son los imprescindibles.” Se é verdade que fazem sentido em qualquer contexto, em Sentinela ainda mais se nota a validade que encerram, tornando mais finas e elegantes as mensagens que transportam, sobretudo por fazerem apelo a uma luta pacífica, a um combate delicado com armas de ternura como forma de combater os ódios daninhos que crescem há séculos e que se estendem como teias de aranha. Volta e meia há que perceber que não estamos sozinhos, e que à nossa volta, se procurarmos bem, há quem nos queira, quem nos deseje bem, sendo obrigação nossa corresponder dessa mesma forma. Por isso dizia que Sentinela é um disco bondoso. Ouvir as suas canções faz de nós pessoas melhores, e essas são as pessoas imprescindíveis. Com os discos passa-se o mesmo. Este é imprescindível.


 

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