O álbum de estreia de Beefheart é o mais acessível da sua discografia, longe da anarquia atonal de Trout Mask Replica.
Tendo fama de autor impenetrável, é com surpresa que encontramos por aqui melodias que ficam no ouvido e grooves tribais capazes de pôr bibliotecários a dançar.
O travo principal vem do sul profundo. Seja na slide guitar palha-de-aço de Ry Cooder, capaz de arranhar diamantes; seja na harmónica roufenha e estridente de Beefheart, filtrada pelo microfone mais barato da loja dos chineses; seja na voz cavernosa à Howlin’ Wolf, fazendo o Ferrão da Rua Sésamo parecer a Teresa Salgueiro; seja na simples produção lo-fi, áspera como a lixa de uma caixa de fósforos: é sempre a mesma lama suja do blues do Mississippi a ensopar-nos a alma.
Beefheart vai mais longe, namorando com géneros tão respeitáveis como o doo-wop e a soul açucarada da Motown. O que nos dá o direito a perguntar: onde raio está, então, Beefheart, o iconoclasta?
É aqui que provém a subtileza do disco, nas falsas boas maneiras, no verniz de normalidade sempre à beira de estalar. Ouçam “Abba Zaba” e digam-me lá se não transborda de um sentido de humor a raiar a psicose (uns aninhos valentes antes, é preciso dizer, de “Rock Lobster” e “Zuvi Zeva Novi”)? Ponham “Electricity” a rodar e digam-nos se por detrás da enunciação extravagante de cada sílaba (E-LEC-TRIC-CI-TY!) não pressentem um psicopata à beira de cortar a avó aos pedacinhos?
Podes fugir mas não te podes esconder. Beefheart bem tentou fechar os seus demónios dentro do baú mas eles arranham, dementes, a madeira, enfiando os seus dedos ossudos e peçonhentos pelas frinchas da tampa de mogno…
É nesta tensão permanente entre acessibilidade e loucura que se faz um dos discos mais interessantes de Beefheart.
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