Morrissey regressa cheio de energia, mas com um disco desequilibrado e que se perde no meio de um caldeirão de estilos
Fechemos primeiro a discussão política: sim, Morrissey desiludiu-nos a todos, passando de ídolo inquestionável de adolescentes de esquerda de todo o mundo para um tipo razoavelmente odioso, auto-centrado, moralista e alegadamente xenófobo. Ok. Estabelecido isto, não chegaríamos sequer a ouvir nova música dele se o julgássemos puramente por estes elementos. Mas não o fazemos.
Desiludidos e traídos, vamos seguindo o que ele faz, como se não quiséssemos mais saber. Mas queremos. Porque a sua voz continua magnética e linda, porque a personagem é demasiado interessante, e porque acreditamos que – por baixo de toda a parvoíce da sua actualidade activista e libertária – ele ainda terá dentro de si um grande disco intemporal.
Infelizmente, os discos vão chegando e partindo, e cada vez vamos acreditando menos que isso ainda seja possível. I am not a dog on a chain é mais um para essa sequência, que reduz a esperança de que a sua música nos possa, novamente, fazer apaixonar.
Este novo disco, que chega menos de um ano depois do morno California Son – álbum de covers que não deixou marcas – traz-nos um Morrissey aparentemente revigorado. A fotografia de capa é de um cantor com um sorriso provocatório, enquanto o título do disco é um clássico de Moz a ser Moz. As letras, aliás, são constantes nesse exercício: um Morrissey desafiante para com aqueles que o criticam, algures entre o moralista e o corajoso incompreendido mas sem qualquer arrependimento. Muitas das vezes, diga-se, resvala um bocado para o queixinhas, algo que não é de agora.
Musicalmente, I am not a dog on a chain é um trabalho enérgico e confiante, mas não necessariamente muito bom. O grande problema é que volta a ser um disco bastante desequilibrado, algo que é praticamente uma constante da sua carreira a solo – com honrosas e magníficas excepções. A energia e a confiança vêm de um registo muito variado, convicto, e com risco. Morrissey, aliás, pode ser acusado de muita coisa, mas nunca de se ter deitado à sombra da bananeira e viver de exercícios passados. Antes pelo contrário.
Em I am not a dog on a chain, tal como nos seus discos dos últimos largos anos, o cantor busca menos a simplicidade e a linearidade, apostando em temos mais complexos e sobretudo em arranjos barrocos, muitas vezes com tralha a mais. Neste disco, as electrónicas estão mais presentes, há sempre um ou outro elemento que nos escapara na audição anterior, mas isso, se traz alguma complexidade, acaba por gerar confusão e até algum cansaço. Entre baterias new-wave e trompetes não convidados, os nossos ouvidos pedem-nos menos. Menos, mas melhor.
Este sentimento acaba por descrever bem o que sentimos em relação a este disco, como em relação aos seus discos anteriores: gostaríamos de mais simplicidade, de menos coisas, de menos pompa. Gostaríamos, sobretudo, de ter mais grandes canções, e menos canções grandes cheias de tiques e bricabraques de estúdio.
A electrónica começa logo a abrir, com “Jim Jim Falls”, uma canção até bastante tradicional e agradável, apesar de apelar ao suicídio. A mesma electrónica dá um ar moderno a “Love is on the way out”, antes de chegar um dos singles e um dos destaques do disco, “Bobby, Do You Think They Know?”, um poderoso dueto com a fortíssima e carismática voz da soul Thelma Houston. Aqui, com a guitarra eléctrica, o baixo insinuante e assustador, e até um surpreendente saxofone, temos um vislumbre do que este excesso todo poderia ter dado se funcionasse. Infelizmente, o poder deste tema não tem rival no resto do álbum.
“I am not a dog on a chain” começa como um “Frankly, Mr. Shankly” de segunda categoria, ilusoriamente leve até ir aumentando de tensão, num crescendo, ao longo do qual Morrissey se queixa de pagar o preço pelas suas opiniões. Segue-se um dos melhores momentos desta rodela, com “What kind of people live in these houses?”, que soa, sim!, a Smiths. Leve, bonita e um alívio pela simplicidade e pela melodia, sem necessitar de grandes invenções.
Já “Knockabout World” é insuflada de ambição, tentando ser maior que a vida, mas falhando. “Darling I hug a pillow” é mais uma salganhada, em que trompetes mariachi (?!) convivem com uma guitarra límpida à U2 (pois…) e um som de bateria meio electrónico que remete para a tenebrosa altura da new-wave. O tema seguinte, “Once I saw the river clean”, assenta num ambiente gótico e numa batida quase motorik, com direito a sintetizador manhoso e tudo; não sendo grande canção, acaba por se destacar por ter uma sonoridade tão diferente do resto. “The truth about Ruth” é quase uma valsa gótica, cheia de cantos e recantos, lenta e arrastada.
“The secret of music” é só um disparate, sete minutos de um nada conceptual que nem merece a pena perder tempo a tentar descrever. O disco fecha com “My hurling days are done”, calma, com subtis coros e sintetizadores discretos, e quase agradecemos, depois de um disco inteiro tão carregado de excessos.
I am not a dog on a chain não é um mau disco, mas sucumbe sob o peso de estilos tão diferentes, arranjos e arranjinhos e pormenores e ideias. O problema é que o que sobra em pompa falta em melodias inolvidáveis. Talvez seja essa a questão, e talvez esse excesso esteja lá para esconder a ausência de grandes linhas melódicas como as que já nos trouxe, no passado. Trocaríamos de bom grado todo o tempo gasto em estúdio e na invenção de soluções sonoras por uma simples canção gloriosa. E disso este disco tem pouco.
Fica a voz, magnífica e carismática como sempre.
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