A porta para o interior de Jaar está entreaberta. Entrar dentro da sua mente é uma decisão nossa. (Foi sempre nossa.)
A carreira de Nicolas Jaar é impressionante e corresponde a um daqueles casos em que a figura de músico e a de artista se fundem numa só. Ao longo deste artigo, vou analisar, claro, o seu mais recente trabalho (Cenizas), mas pretendo também revisitar alguns momentos do percurso de Jaar que, hoje, e mais do que nunca, se assume como uma das bandeiras mais altas da música contemporânea.
O produtor chileno-americano é capaz de integrar os projetos mais fascinantes, mas isso já nós sabíamos. Em 2012, depois ter lançado Space Is Only Noise, Nicolas Jaar (qual músico, qual quê…) improvisou um concerto de 5 horas (!) no museu MoMA PS1, em Brooklyn, num evento organizado pela Clown and Sunset Aesthetics, uma «casa de produção interdisciplinar», criada em 2009. Nicolas construiu esse projeto ao lado de Noah Kraft. A primeira label de Nicolas Jaar nasce nesse contexto e foi batizada com o mesmo nome, tendo sido a casa dos projetos de Nicolas até 2013, ano em que nasce a label Other People, que tem sido responsável pelos lançamentos do músico, e dos seus colaboradores, desde então.
Nicolas Jaar foi, desde o início, um nome forte no seu universo musical. O seu primeiro lançamento data de 2008, quando Jaar contava apenas 18 anos. O título “The Student” foi produzido por um mini-Nicolas Jaar e é estonteante. A qualidade do tema surpreende: não é normal um miúdo executar um desenho musical daquele género. Em “The Student”, percebemos que Jaar soube, desde sempre, o que queria fazer e que caminhos pretendia seguir.
O chileno-americano espalha o seu sangue sul-americano em grande parte das suas canções. Os ritmos das suas produções conseguem atingir sempre temperaturas elevadas, assumindo contornos místicos e sensuais, revelados pelo escuro das pistas de dança e pelo mistério da noite. No entanto, Jaar tem, ao mesmo tempo, a capacidade contrária: a de compor apontamentos musicais frios, distantes e abstratos.
O impressionante em Nicolas Jaar é que ele não para; ele parece querer sempre criar mais qualquer coisa. Em 2011, com Dave Harrington, criou o grupo DARKSIDE, que conta com um álbum lançado – e aclamado (Psychic, de 2013). Em 2018, Jaar «inventa» Against All Logic e lança o álbum 2012-2017. A Pitchfork considerou-o um dos melhores álbuns do ano e os nossos ouvidos percebem bem porquê – no entanto, os nossos pés percebem ainda melhor (2012-2017 é um bom exemplo do que é e deve ser dance music. O conceito desse LP é bastante simples: é uma reunião de todos os rascunhos musicais que Jaar foi fazendo entre o período a que o título do álbum se refere.
No meio disto tudo, Nicolas Jaar tem ainda no seu currículo uma soundtrack. Em 2015, compôs a banda-sonora do drama francês Deephan, que arrecadou a Palma de Ouro em Cannes nesse mesmo ano. (Vi-me obrigado a destacar este parágrafo.)
Bem no início de 2020, no dia 10 de janeiro, Jaar atingiu os 30 anos e, em apenas em três meses, lançou dois projetos. O primeiro, também no início de janeiro, novamente sob Against All Logic. 2017-2019 foi um bom presente de anos que Nicolas ofereceu a si próprio e a nós. Comparativamente a 2012-2017, esse trabalho de Jaar é um «bocadinho» mais agressivo (como quem diz… «é mais techno»).
Para compreender Cenizas, vale a pena dedicar duas ou três palavras a 2017-2019 porque os dois projetos foram produzidos em simultâneo, isto é, no mesmo período temporal. Hoje, estou mais certo de que Jaar tem, dentro da sua cabeça, dois cérebros. Usou um para 2017-2019 e usou o outro para Cenizas : só assim consigo explicar, numa primeira lição, o porquê das diferenças sonoras dos dois projetos. Cenizas é uma imagem abstrata, enquanto 2017-2019 é uma folha acabadinha de sair de um sismógrafo. A diferença entre as orientações dos dois projetos é fácil de compreender, porém. 2017-2019 é fruto da diversão de Nicolas Jaar, do que ele foi fazendo nos seus tempos-livres; Cenizas é um álbum-conceito, criado a partir de um ponto homogéneo e inspirado por uma linha central de ideias. No entanto, as duas produções foram geradas no mesmo ventre criativo – é importante reter essa ideia.
No seu site oficial, Nicolas Jaar deixa-nos umas palavras sobre Cenizas, publicadas na véspera do lançamento do álbum. Através dessa nota, o artista confessa que, desde há uns anos, se isolou – voluntariamente (e não devido ao Covid-19) – de maneira a destruir toda a negatividade que se tinha apoderado dele. Os anos passaram e, aparentemente, Jaar ainda não conseguiu acabar com ela («Of course, this didn’t happen.»). As suas táticas de combate não tiveram sucesso. Jaar continua num túnel negativo, escuro e, aparentemente, sem fim.
Calculo agora que Nicolas está nesse estádio há já algum tempo. 2017-2019 parece ter sido também criado no interior desse túnel negro. «A lot of these shards can be heard in the last Against All Logic album, and countless things you’ll never hear (…)», identifica Nicolas Jaar. Ao longo da sua carreira, a sua estética foi sempre bastante abstrata e turva, mas esse pendor tem-se vindo a intensificar. Mas, ao mesmo tempo, as imagens que o artista produz estão cada vez mais palpáveis; sentimo-las mais próximas de nós e dos nossos sentidos.
Também nós, no decorrer das nossas vidas, nos podemos encontrar, por vezes, em túneis sem fim. Acontece a todos, eventualmente. A vida nem sempre é clara e linear. Aliás, a vida raramente é clara e linear. Na verdade, chego, muitas vezes, a achar que a vida não é, nem nunca foi, clara e linear. O que fazer quando nos encontramos presos? As pessoas acham que são diferentes umas das outras e que ninguém é igual a ninguém, mas essa a maior mentira que podemos contar a nós próprios. Comportamo-nos todos das mesma forma; os contextos nos quais nos inserimos é que diferem. Quando uma pessoa se vê «presa» num túnel negro e sem luz, pensa, num primeiro momento, em virar as costas, em voltar para trás. E faz sentido que assim seja: receamos o futuro e temos medo do desconhecido. Inverter o percurso, na esperança de retomar a normalidade da nossa vida, parece ser sempre o plano certo. Mas não é. A dada altura, apercebemo-nos de que apenas podemos caminhar em frente, em direção ao hipotético fim luminoso do túnel. Na vida (e no processo criativo) de Jaar, Cenizas é esse caminhar em frente.
A porta para o interior de Jaar está entreaberta. Entrar dentro da sua mente é uma decisão nossa. Sempre foi nossa.
Cenizas é o álbum mais intenso na carreira do compositor intimista e é também o registo no qual podemos identificar, com mais clarividência, as influências que inspiraram o autor. John Coltrane. Crescent, de 1964. É Jaar quem assume essa influência nas mesmas notas que colocou no seu site. (Realmente, quando as influências são boas, temos orgulho em partilhá-las.) Há tantos momentos «Coltrane» em Cenizas. Ouçam com atenção a faixa “Agosto”, que tem tanto de Jaar, como de John. O trompete existencialista que aí encontramos constrói uma das melhores estruturas musicais de todo o álbum.
Cenizas não é propriamente um álbum «animado». É um projeto parado, sim, mas é rico em pormenores. As três primeiras faixas do álbum, numa primeira audição, entram nos nossos ouvidos sob a forma de sussurros; é normal que, no início, não nos digam muito, mas, ao longo da faixa número 3, na homónima “Cenizas”, Nicolas chega (finalmente) até nós, através de murmúrios cantados em espanhol.
Não faria sentido, aliás, que Cenizas fosse um projeto «alegre», mas nem por isso devemos tomá-lo como uma expressão de um período negativo do seu autor. Cenizas é um grito – mudo – de resistência e de sacrífico, que se intensifica ao longo do processo de audição. Cenizas é, mais uma vez segundo o próprio autor, um processo de metamorfose – de mudança, de passagem do negativo para o positivo.
As teclas de piano em “Gocce” surpreendem e conseguem rasgar, um bocadinho, o céu negro que se estende ao longo do álbum – Alice Coltrane parece ter influenciado o Nicolas em alguns momentos dessa faixa. E “Mud”, sendo a faixa mais comprida do LP (com 7 minutos), reúne, por volta do minuto 4, os momentos mais light do projeto. Entre as faixas “Vacíar” e “Rubble”, Jaar reforça o seu existencialismo, entre puros apontamentos eletrónicos, versos recitados (em “Sunder”) e vocais indecifráveis. (Esta fase de Cenizas podia facilmente figurar num qualquer filme de ficção científica.) A parte final de “Hello, Chain” contrasta completamente com o início da mesma, onde Nicolas se mostra acorrentado, e ainda bem dentro do vazio do túnel. E mais uma nota para os sopros de Coltrane, que regressam em “Rubble”.
“Garden” é a música mais pacífica do álbum; a faixa resume-se a 5 minutos de um piano branco e leve que, por isso, pode, talvez, representar o «libertar» de Jaar. No entanto, na faixa seguinte, em “Xerox”, a escuridão incerta e ruidosa regressa, mas agora visivelmente fragilizada pelos esforços do autor.
A derradeira faixa de Cenizas, “Faith Made Of Silk” podia muito bem ter sido obra de DARKSIDE. No último suspiro deste trabalho, somos atingidos por momentos de percussão persistentes e intensos – claro –, ao mesmo tempo que reconhecemos, agora melhor do que nunca, a voz cantada (em inglês) de Nicolas Jaar, no momento mais «esclarecido» do álbum. Os momentos finais de “Faith Made Of Silk” são poderosos e incansáveis até que, de repente, a faixa termina e o álbum chega ao fim.
Agora, nós não sabemos o que sentir. Nem sabemos onde estamos. Será que continuamos dentro do túnel escuro e negativo? Ou será que alcançámos o seu fim?
Sem comentários:
Enviar um comentário