Gil Scott-Heron foi sempre uma luta constante entre a guerra e a paz, entre o justo e o injusto, entre o bom e o mau.
Gil Scott-Heron é considerado, por muitos, o primeiro MC da história.
Heron é um pioneiro que se aventurou no universo da música por caminhos nunca antes vistos na sua época. Heron nunca foi muito de cantar. As notas vocais, para esta velha raposa, tiveram sempre um papel secundário. Desde o primeiro dia que Gil Scott-Heron se interessou apenas por uma coisa: por espalhar mensagens e informar; informar toda a gente para o que ia acontecendo de mal no mundo (mas sobretudo na América).
Heron gostou sempre muito de escrever para, depois, poder recitar, em palco ou nas ruas negligenciadas nas quais os seus pés caminharam, a sua poesia. Ao longo da sua carreira, fez-se acompanhar, porém, sempre por músicos da melhor qualidade (como Brian Jackson, por exemplo), que conseguiram sempre envolver as fortes palavras de Heron em mantas sonoras jazz e soul transcendentes.
(Até à década de 70’, eram raros – ou até mesmo inexistentes – os artistas que, abdicando do canto, subiam ao palco para recitar as suas letras. É por essa razão que Heron conserva um posição de culto na religião do hip-hop.)
No seu álbum de estreia, Small Talk At The 125th and Lenox, na icónica “The Revolution Will Not Be Televised”, Gil Scott-Heron apresenta ao mundo inteiro (mas especialmente aos E.U.A. de Richard Nixon) o seu objetivo de vida: acordar a sociedade norte-americana, motivando uma revolução iminente.
Algo estava mal e, por isso, a mudança era necessária e urgente.
«You will not be able to stay home, brother.
You will not be able to plug in, turn on and drop out.
You will not be able to lose yourself on skag and skip.
Skip out for beer during commercials.
Because the revolution will not be televised.
The revolution will not be televised.»
Até ao dia da sua morte (faleceu em 2011, com uns curtos 62 anos, explicados por uma vida ligada ao álcool e às drogas), Heron nunca parou nem de lutar, nem de escrever (e recitar, claro) sobre o que considerava ser injusto e cruel para si e para os seus, para sempre os «esquecidos» pelos poderes centrais norte-americanos.
Ao longo da sua carreira, Gil Scott-Heron lançou 15 trabalhos realizados em estúdio, sendo que o último, I’m New Here, foi lançado perto do ano da sua morte, em 2010. É o derradeiro álbum de Heron e talvez seja por isso que guarde em si um significado especial, de traços sagrados.
E assim chegamos a Makaya McCraven, baterista e produtor norte-americano. Makaya autointitula-se, também, «cientista de beats» – e muito bem, porque é o que ele é. Numa carreira que começou nem há 10 anos (o seu primeiro trabalho nasceu em 2012), Makaya McCraven já leva uma mão cheia de álbuns, merecedores de toda a nossa atenção e dos nossos ouvidos.
Tal como Jamie XX já tinha feito em 2011, Makaya pegou nas faixas de Heron em I’m New Here e, como «cientista de beats» que é, revisitou-as. McCraven propôs-se simplesmente a «imaginar» o trabalho que o mestre Heron tinha realizado. Nos intensos 37 minutos que constroem We’re New Again – A Reimagining by Makaya McCraven, Makaya mostra-nos a sua conceção, naturalmente própria e individual, sobre a música de Gil Scott-Heron e, em especial, sobre o último registo do músico.
We’re New Again é um álbum intenso e escuro. Ao longo do processo de audição deste registo, os nosso ouvidos – que, nesta frase, são os nossos olhos – pouco conseguem ver e distinguir. Estamos sozinhos numa Nova Iorque também abandonada, as ruas estão desertas e, no ar, paira uma névoa escura, que foi , de certeza absoluta, criada pelo fumo que, ininterruptamente, é libertado por todos os pesados cigarros que Heron fumou ao longo de toda a sua vida. As ruas da cidade estão em ebulição. Esta «N.Y» está-nos a matar e nós não pertencemos aqui, mas nela permanecemos, pois, mesmo que se forçássemos o êxodo desta terra dominada por arranha-céus, não iríamos conseguir sair do seu interior. Estamos aqui presos. (Vale a pena aproveitar bem os 5 minutos da faixa “New York Is Killing Me”, que, como todas as restantes canções desta reedição, apresenta traços diferentes da canção original, ao mesmo tempo que a respeita, conserva e enaltece.)
Mas nem por isso este trabalho de McCraven pode ser visto como um manifestação de tristeza, confusão ou insegurança: é simplesmente um retrato fiel daquilo que sempre habitou no interior da arte e das experiências de Gil Scott-Heron, que, hoje, parece que viveu toda a sua vida desenquadrado de tudo e de todos. E viveu.
Gil Scott-Heron foi sempre uma luta constante entre a guerra e a paz, entre o justo e o injusto, entre o bom e o mau. Em todos os seus trabalhos, conseguimos perceber que aquele homem de cigarro na boca e microfone na mão era muito mais do que um músico que era poeta e do que um poeta que era músico: Heron foi (e é) um profeta – à sua maneira, claro – que nunca aceitou ficar calado.
Devemos reconhecer o esforço e o talento de Makaya em ter conseguido conjugar o que foi e o que representa Gil Scott-Heron em I’m New Here com o seu próprio sangue musical. Revisitar um trabalho é sempre um trabalho ingrato, pois fica a ideia de que a pessoa que está a reconstruir a obra se está a intrometer com o génio do criador, mas isso não se sucedeu com Makaya McCraven em We’re New Again: o músico habilitou-se a respeitar o legado preto e dourado de Heron, seguindo o seu coração criativo.
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