segunda-feira, 6 de novembro de 2023

“Estúpido Cupido” (Odeon, 1959), Celly Campello

 


Famosa pelos sambas-canções falando das dores do amor carregadas de versos melodramáticos, Nora Ney (1922-2003) foi, no entanto, a primeira voz a gravar um rock no Brasil. Em outubro de 1955, ela gravou, em inglês, “Rock Around The Clock”, grande sucesso de Bill Haley & His Comets que estava varrendo os Estados Unidos de ponta a ponta naquele mesmo ano. A gravação de Nora dava à luz o rock brasileiro.

Porém, o grande ídolo do rock brasileiro estava por vir pouco depois, e assim como Nora Ney, também era mulher, mais precisamente, uma garota de 16 anos: Celly Campello (1942-2003). Com sua voz doce, jeito meigo e carismático, Celly se tornaria ainda adolescente, o primeiro grande fenômeno de massa do rock brasileiro. Entre 1959 e 1962, emplacou vários rocks ingênuos e canções românticas “açucaradas” que embalaram mentes e corações de milhões de jovens de norte a sul do Brasil naqueles “anos dourados”.

Nascida em 18 de junho de 1942, em São Paulo, Célia Bennelli Campello, ainda bebê, mudou-se com sua família para Taubaté, interior do estado de São Paulo. Aos seis anos de idade, a pequena Célia fez a sua primeira apresentação ao vivo cantando na Rádio Cacique, em Taubaté. Dali em diante, sucederam-se as apresentações nas emissoras de rádio de Taubaté, juntamente com seu irmão, Sérgio Campello, mais velho do que ela. No comecinho de sua adolescência, Célia passa a apresentar o seu próprio programa na Rádio Cacique, ao lado do irmão Sérgio.

Em 1956, Sérgio Campello deixa Taubaté e parte para São Paulo para buscar novas possibilidades na carreira artística. Dois anos depois, consegue um contrato com a gravadora Odeon para gravar um disco de 78 rotações com duas canções. Teve a ideia de convidar a irmã Célia, que ainda morava em Taubaté, para gravar a outra canção. Sérgio gravou “Forgive Me”, enquanto que Célia gravou “Handsome Boy”. Os dois foram acompanhados nas gravações por Mário Gennari e seu conjunto. O próprio Mário Gennari foi também o produtor. O radialista Hélio Alencar, da Rádio Nacional de São Paulo, foi quem criou os nomes artísticos para os dois irmãos: Sérgio passou a ser conhecido como Tony Campello, e Célia, virou Celly Campello. E foi com esses nomes artísticos que o primeiro disco dos irmãos Campello chegou às lojas, em junho de 1958, e vendeu mais de 38 mil cópias. Em outubro do mesmo ano, é lançado um disco de 78 rotações apenas de Celly, com as canções “Devotion” e “O Céu Mudou de Cor”.

Mas o salto para o sucesso de Celly Campello acontece com o lançamento do disco de 78 rotações com “Secret” e “Estúpido Cupido”, em março de 1959. O lado B que trouxe “Estúpido Cupido”, versão em português feita por Fred Jorge para “Stupid Cupid”, composta por Neil Sedaka e  Howard Greenfield, e que fez um grande sucesso mundial na voz de Connie Francis, em 1958. Aqui no Brasil, no entanto, a música sobre o cupido e suas flechas do amor catapultou Celly para o estrelato, aos 16 anos. O disco com “Estúpido Cupido” chegou à incrível marca de 120 mil cópias, tornando Celly o primeiro grande fenômeno do rock brasileiro. Assim como ela, seu irmão, Tony Campello, prosseguia a sua carreira de rock star brasileiro com grande êxito.

Em maio de 1959, Celly estreou o seu próprio programa de TV, o Crush Em Hi-Fi, na TV Record de São Paulo, comandado por ela e seu irmão Tony, e no qual recebiam convidados, todos eles ligados ao nascente rock brasileiro como Wilson Miranda, Sérgio Murilo, George Freedman, Demétrius, Ronnie Cord e The Jordans.

Os irmãos Celly e Tony Campello em divulgação de disco em
uma emissora de rádio, em 1959. 

Finalmente, em setembro de 1959, a gravadora Odeon lançava o primeiro álbum de Celly Campello, Estúpido Cupido, título da música que era o grande sucesso do início da carreira da jovem cantora, e uma das músicas mais tocadas daquele ano no Brasil.

Estúpido Cupido é um álbum que reflete muito bem o jeito meigo e carismático da cantora. É recheado de rocks e canções românticas com um frescor juvenil. Embora seja um disco precursor do rock brasileiro, Estúpido Cupido está distante da transgressão do rock americano, e se aproxima mais do romantismo do rock italiano. Se em tese, o rock é a mola mestra de Estúpido Cupido, o conteúdo do álbum passeia por outros gêneros musicais como bolero, calypso e rumba, além é claro, das baladas românticas carregadas de muito sentimentalismo adolescente. A grande maioria das músicas são versões em português ou regravações em inglês de canções do rock e pop estrangeiros da época. As versões em português são de Fred Jorge, que se tornou um especialista no assunto. Um detalhe interessante no álbum é que das doze faixas, cinco são cantadas por Celly em inglês.

O álbum começa muito bem com a faixa-título, já que havia sido lançada num disco de 78 rotações que vendeu mais de 100 mil cópias. Em “Estúpido Cupido”, a canção, Celly canta de maneira graciosa e muito bem afinada. Aliás, chama a atenção como Celly era tão bem afinada, apesar da pouca idade. “Estúpido Cupido” é uma das melhores versões feitas em português para uma canção estrangeira, e que acabou sendo incorporada na música brasileira.

O estrelato de Celly Campello fez a jovem cantora
estampar várias capas de resvista da época.

Após o alegre e animado rock “Estupido Cupido”, vem o bolero “The Secret”, gravado originalmente por Gordon McRae, em 1958. Apesar da versão original ter uma inclinação para o bolero, o arranjo era bem mais estilizado, enquanto que a versão de Celly, gravada em inglês, é um bolero mais carregado de “latinidade”. O rock “Muito Jovem” é uma versão em português de “Just Young”, sucesso de 1958 de Paul Anka. Nessa canção, Celly se passa por uma garota que tem medo do que as pessoas vão falar por causa de um beijo.

“Túnel do Amor” é uma versão em português de “Tunnel of Love”, canção gravada originalmente por Doris Day, em 1958, e que foi tema do filme de mesmo nome, estrelado pela própria Doris ao lado de Richard Widmark. Celly canta “Tunel do Amor” com muita graça e acompanhada por um coro masculino. A canção foi um dos maiores sucessos do álbum e da carreira de Celly Campello.

Ao olhar “Handsome Boy” na lista de faixas do álbum, alguém poderá imaginar que é mais uma canção “gringa” gravada por Celly Campello. Contudo, embora escrita em inglês, “Handsome Boy” foi composta por compositores brasileiros, Mário Gennari Filho e Celeste Novaes. Mário é o mesmo que produziu e comando o conjunto que acompanhou Celly nas gravações do álbum. A música é um misto de rumba e calypso.

“Who's Sorry Now” é uma canção antiga, de 1923, gravada pela primeira vez por Ted Snyder. A partir daí, teve várias regravações, sendo a de Connie Francis, de 1957, a de maior sucesso. Celly regravou a canção, porém cantando no idioma original, o inglês. Enquanto a versão de Connie é mais pop e leve, a de Celly é mais lenta, bem ao estilo do rock balada dos anos 1950, e com uma dose a mais de carga dramática do que a versão de Connie.

O lado B da versão LP de Estúpido Cupido começa com o bolero “Broto Já Chorar” (uma versão em português de "Heartaches At Sweet Sixteen", sucesso na voz de Kathy Linden, em 1959) que trata sobre uma garota que tem amor próprio e não quer saber rapaz mulherengo. “Fale-me Com Carinho” é uma versão em português da canção francesa “Dis-moi Quelque Chose de Gentil”, cuja versão original foi gravada por Solange Berry, e é uma canção sobre juras e promessas de amor. “Querido Cupido” seria uma espécie de “continuação” de “Estúpido Cupido”. Desta vez, Celly não escapa das flechadas de amor do cupido. Destaque para as harmonizações vocais de apoio. “Tammy” é uma balada romântica lindamente cantada por Celly Campello em inglês, como no original, gravado por Debbie Reynolds, em 1957. Os arranjos e vocalizações são muito bem elaborados, e seguem o padrão americano da época.

Estrelas do rock brasileiro, os irmãos Celly Campello e Tony Campello com a cantora
norte-americana Brenda Lee (ao centro), que estava visitando o Brasil em 1959.

“Melodie d’Amour” é uma canção típica das Antilhas Francesas, composta em francês nos anos 1930 com o título original “Maladie d'Amour”. A canção só veio ganhar fama internacional em 1949, através da gravação de Henri Salvador (1917-2008). Em 1957, foi lançada uma versão em inglês como “Melodie D’Amour”, gravada pelo grupo vocal americano The Ames Brothers. Celly canta em inglês, e os arranjos instrumentais da música seguem bem ao estilo do beguine, gênero musical típico das ilhas de onde surgiu a canção. Os arranjos da versão brasileira são bem diferentes da versão artificial e pouco empolgante da dos Ames Brothers.

Estúpido Cupido termina com “Lacinhos Cor-de-Rosa”, outro grande sucesso da carreira de Celly Campello, e outra versão em português de canção estrangeira presente no álbum. A música é uma versão de “Pink Shoe Laces”, lançada pela cantora pop adolescente Dodie Stevens, no comecinho de 1959. “Lacinhos Cor-de-Rosa” é um rock’n’roll sobre uma garota bem novinha que tenta conquistar com seu sapatinho com laços cor-de-rosa, um jovem e rebelde playboy que desfila pelas ruas com a sua lambreta. Porém, a garotinha tem seus sonhos frustrados porque o rapaz prefere garotas mais velhas.

Em abril de 1960, Celly lança o seu segundo álbum, Broto Certinho, cujo grande sucesso é “Banho de Lua”. Nos próximos dois anos, Celly Campello desfruta de um grande prestígio, e se torna uma figura quase que onipresente. Faz grandes turnês nacionais e até pela América do Sul. Participa de dois filmes de Mazzaropi, grava um jingle do achocolatado Toddy com seu irmão Tony Campello, e uma fábrica de brinquedos lança a boneca Celly, que apareceu na capa do terceiro álbum da cantora, A Bonequinha Que Canta, de 1960.

Casamento de Celly Campello com o contador José Eduardo Chacon, em 1962. 

Depois de um período de fama e muita exposição, Celly Campello casou-se em 1962 com o contador da Petrobras, José Eduardo Gomes Chacon, e abandonou a carreira artística aos vinte anos. Durante a década de 1960, chegando a lançar um álbum em 1968, mas sem grande repercussão. Em 1976, fez um grande retorno à carreira musical por causa do impacto do sucesso da telenovela Estúpido Cupido, da TV Globo, ambientada no começo dos anos 1960. A telenovela provocou um revival dos primórdios do rock brasileiro, e artistas daquela geração como Celly Campello, Tony Campello, Carlos Gonzaga, Ronnie Cord entre outros, foram redescobertos. Celly chegou a fazer turnê pelo Brasil, lançar discos e fazer apresentações na TV, mas após a fama da novela, a cantora se afastou novamente da carreira artística.

Em março de 2003, aos 60 anos, Celly Campello faleceu vítima de câncer de mama. Mesmo tendo abandonado a carreira de sucesso, teve um casamento feliz, construiu uma família e chegou a conhecer o primeiro neto, um ano antes de morrer. Ou seja, realizou o sonho que qualquer garota de sua geração dos ditos “anos dourados” sonhava. Mesmo com uma carreira curta, e com alguns breves retornos, Celly deixou o seu legado na história do rock brasileiro. 

Faixas

Lado A
  1. “Estúpido Cupido” (Stupid Cupid) (Neil Sedaka - Howard Greenfield - versão: Fred Jorge)
  2. “The Secret” (Joe Lubin - I. J. Roth)
  3. “Muito Jovem” (Just Young) (Lya S. Roberts - versão: Fred Jorge)
  4. “Túnel do Amor” (Tunnel of Love) (Patty Fischer - Bob Roberts - versão: Fred Jorge)
  5. “Handsome Boy” (Mário Gennari Filho - Celeste Novaes)
  6. “Who's Sorry Now” (Ted Snyder - Bert Kalmar - Harry Ruby) 
Lado B
  1. “Broto Já Sabe Chorar” (Heartaches at Sweet Sixteen) (Reld - Kosloff - Springer - versão: Fred Jorge)
  2. “Fale-me Com Carinho” (Dis-moi Quelque Chose de Gentil) (Paul Misrak - Andre Hornez - versão: Espírito Santo)
  3. “Querido Cupido” (Fred Jorge - Archimedes Messina)
  4. “Tammy” (Jay Livingston - Ray Evans)
  5. “Melodie d'Amour” (Henry Salvador - Marc Lanjean)
  6. “Lacinhos Cor-de-Rosa” (Pink Shoe Laces) (Mickie Grant - versão: Fred Jorge)



“Muito Jovem” (Just Young)


“Handsome Boy”


“Who's Sorry Now”



“Broto Já Sabe Chorar”


“Melodie d'Amour”



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