quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Bill Callahan – Shepherd in a Sheepskin Vest (2019)


 

Bill Callahan encontrou a paz e a felicidade, e entrega-nos um disco bonito e com a qualidade do costume.

Depois de 15 anos a assinar discos lo-fi sob o nome de Smog, Bill Callahan iniciou em 2007 um trajecto em nome próprio que o colocou num patamar onde muito poucos (quem?) conseguem estar. Na verdade, as origens desse fenómeno podem ser encontradas em 2005, aquando da edição de A River Ain’t Too Much To Love, o seu último disco enquanto Smog, que já tinha pouco do experimentalismo anterior e mais das características que marcariam a década seguinte.

O ponto mais alto desse percurso terá sido Sometimes I Wish We Were An Eagle, obra-prima absoluta de 2009. E, por incrível que pareça, os dois discos seguintes  – Apocalypse, de 2011, e Dream River, de 2013 – conseguiram chegar lá muito perto, fazendo estes três álbuns uma sequência extraordinária (com a brincadeira de Have Fun With God, de 2014, pelo meio). Não é, por isso, de estranhar, que quando se começa a falar de um novo disco de Bill Callahan, a redacção do Altamont fique em alvoroço. Conseguirá ele manter esta espectacular forma?

O novíssimo Shepherd in a Sheepskin Vest é mais um desses tira-teimas. E ainda não é desta que o apanhamos em falso.

Mas há, desta feita, muitas diferenças. Em primeiro lugar, o timing. Os cinco discos anteriores surgiram com uma precisão relojoeira de dois em dois anos, sem falhar. Para este foi preciso esperar três vezes mais, seis anos desde o álbum prévio.

Em segundo lugar, há uma ruptura musical e de imaginário visual. Se Sometimes I Wish We Were An Eagle foi o seu disco musicalmente mais opulento, nos dois seguintes Callahan percorreu um caminho espartano de depuração sonora, reduzindo as suas excelentes canções ao que é puramente essencial, e nada mais. Até as capas de Apocalypse e Dream River partilhavam uma linguagem comum, que é agora abandonada.

Em terceiro lugar, com 20 músicas, este é o disco mais longo da sua carreira.

Em quarto lugar, e isto é o que realmente importa, temos perante nós um Bill Callahan emocionalmente diferente. Nestes seis anos, o músico norte-americano encontrou a mulher da sua vida e teve um filho. E viu-se perante algo que nunca conhecera: Callahan é, agora, um tipo feliz. O ajuste a todas estas mudanças explica os seis anos face ao último disco, e neste ele admite mesmo que “it feels good to be writing again”, em “Writing”.

É uma questão velha como o mundo: se um artista cria as suas obras como forma de lidar com a tristeza e a frustração, numa catarse, o que acontece à sua arte quando essas sombras negras desaparecem? Por outras palavras, a felicidade é má para a criação artística, por fazer desaparecer a ânsia de expressão? Se um tipo está feliz com a sua vida, o que o fará pegar novamente na guitarra e voltar ao trabalho?

Tudo questões que perpassam por todo este Shepherd in a Sheepskin Vest. Callahan, o tipo melancólico e muitas vezes lúgubre, não se limitou a encontrar a felicidade no seu lar: ele canta exactamente sobre isso.

As suas letras e o seu imaginário sempre se prenderam com as grandes questões: a vida e a morte, a natureza, a solidão, o papel de um homem neste mundo, a redenção. Não que o seu tom fosse necessariamente desesperado; Callahan conseguia sempre, no meio da desesperança, não parecer desesperado, mas sim estóico perante o absurdo da existência, como alguém que percebe que não há objectivo nisto tudo mas que continua adiante, ainda assim. Agora, em 2019, há esperança na sua voz e há uma calma aceitação de que, afinal, “life is good”.

É uma mudança que pode parecer, a alguns, subtil, mas é na verdade colossal. Musicalmente, Shepherd in a Sheepskin Vest habita esse contentamento dourado e soalheiro, não o sol adolescente da Califórnia mas sim o som de fim de tarde num qualquer bosque norte-americano, visto da janela de uma cabana confortável, onde mora uma família finalmente feliz.

As diferenças, naturalmente, não se limitam às letras, e contaminam a música. O ritmo aqui é lento, calmo, satisfeito. As histórias e as canções sucedem-se bonitas, sem sobressaltos, sem rupturas. A voz de Callahan continua magnífica, como que feita de mogno nobre, e comandando a autoridade de sempre. Podia estar a ler a sua lista de compras, e alguém mais distraído não deixaria de sentir que lhe estavam a ser confiadas pérolas insubstituíveis de filosofia de vida.

Com este novo enquadramento emocional a música deixa entrar mais luz, e mais instrumentos. A austeridade esquelética de Apocalypse e Dream River deu lugar a mais instrumentos, a arranjos ligeiramente mais complexos mas que parecem simples: uma guitarra slide aqui, um teclado muito subtil ali, ainda um coro feminino sublinhando uma ou outra frase.

Por vezes, sentimos falta da frieza de montanha dos discos anteriores, de um certo tom apocalíptico ou de um desespero emocional que se pega à construção musical. Mas em troca temos o disco mais bonito que Callahan faz desde Sometimes I Wish We Were An Eagle.

Não vamos destacar temas, porque este músico há muito deixou de viver nesse universo de singles. Esta, tal como outras anteriores, é uma obra para se consumir por inteiro, com temas que se pegam uns aos outros, jogam com ideias dos anteriores, um disco que se desenrola pacatamente à nossa frente.

Há ainda dúvida aqui, há ainda medo e incerteza. Mas há também amor e paz.

Num mundo cheio de futilidades e de ruído internético, há demasiada informação. Precisamos de menos palavras, mas das palavras certas, profundas e fecundas. Com a morte do mestre Leonard Cohen – o rei da palavra justa e necessária e nada mais do que isso – Bill Callahan resiste praticamente sozinho nesse planalto de música e poesia.

Celebremos mais esta grande, grande obra.



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