A alma e a voz dos Silver Jews regressa sob um novo nome e, através dos Purple Mountains faz um disco pessoalíssimo e extraordinário.
David Berman chegou aos olhos e ouvidos do mundo através dos Silver Jews, banda de rock/country alternativo que criou com Stephen Malkmus e Bob Nastanovich, antes de estes se meterem por um projecto (inicialmente) paralelo chamado Pavement. Entre 1994 e 2008, os Jews editaram seis discos que estabeleceram, para um pequeno grupo de fiéis, as bases de um culto centrado na personalidade e nas letras de Berman, poeta, cantor e compositor, que se manteve como a única peça estável numa banda mutante e mutável. Em 2009, Berman anunciou o fim dos Silver Jews, e retirou-se do mundo.
O reclusivo e depressivo Berman não deixa que se saiba muito da sua vida, mas numa entrevista recente – absolutamente imperdível – acabou por revelar o que se passou durante estes dez anos. Afastou-se do mundo, inicialmente cumprindo “uma espécie de sonho de criança, que foi ter todo o tempo do mundo para ler”. Mas não foi só isso que aconteceu. A sua mãe morreu de cancro e o seu casamento de 20 anos com Cassie Berman (que integrou a última encarnação dos Silver Jews) praticamente acabou. A leitura compulsiva de livros sobre história e política também não pagou as contas e, em cima de tudo isso, acentuou-se a depressão crónica de Berman, uma sombra que nunca se vai embora. Neste beco cada vez mais sem saída, pegou finalmente na guitarra e, depois de uma falsa partida com o seu fã Dan Bejar, o Senhor Destroyer, Berman voltou à estaca zero, mas decidido a voltar a fazer um disco. Sabendo que precisava de uma banda e de uma perspectiva externa que o ajudasse a focar-se, contactou os norte-americanos Woods, apesar de não os conhecer. E foi assim, com o mítico David Berman e os mais jovens Woods, que nasceram os Purple Mountains.
Este primeiro disco, homónimo, é naturalmente marcado pelo lugar sombrio onde Berman viveu e onde, na verdade, ainda se encontra. A perda da mãe e, sobretudo, o fim do seu casamento, são os acontecimentos que servem de coordenadas para as extraordinárias letras que compõem este trabalho. O arranque, com “That’s just the way that I feel”, diz tudo nos primeiros versos:
Well, I don’t like talkin’ to myself
But someone’s gotta say it, hell
I mean, things have not been going well
This time I think I finally fucked myself
You see, the life I live is sickening
I spent a decade playing chicken with oblivion
Day to day, I’m neck and neck with giving in
I’m the same old wreck I’ve always been.
Estão aqui os dez anos perdidos, a desorientação, a depressão, a falta de auto-estima. Senhoras e senhores, está aqui David Berman, em toda a sua poética glória. Mais à frente neste magnífico tema, um enigma: “the end of all wanting is all I’ve been wanting“. É curioso como Berman, que aprofundou nos últimos anos a sua relação com o judaísmo, chegue afinal a este mantra budista, tal como Leonard Cohen passou a vida a equilibrar essas mesmas duas fés.
Segue-se a auto-explicativa “All my happiness is gone”:
Friends are warmer than gold when you’re old
And keeping them is harder than you might suppose
Lately, I tend to make strangers wherever I go
Some of them were once people I was happy to know.
De seguida, outro tiro fabuloso, “Darkness and Cold”, que é um som vintage de Silver Jews, com os seus toques country de extremo bom gosto. Mais uma vez, a letra é à flor da pele:
The light of my life is going out tonight
As the sun sinks in the west
The light of my life is going out tonight
With someone she just met
She kept it burning longer than I had right to expect
The light of my life is going out tonight
Without a flicker of regret
Neste momento temos de parar com as citações, para não aborrecer o leitor, mas a tentação é grande, tal a riqueza das letras pessoalíssimas deste disco. Acresce a isto que, na já citada entrevista, Berman fala abertamente de tudo. Sim, é sobre a sua mulher (ainda são casados mas separaram-se há dois anos), é sobre a sua mãe, é sobre a depressão, sim, sim, sim. As feridas estão todas ali, e ainda só tocámos em três das dez músicas deste disco. Paremos por aqui, porque o nível é semelhante em todo o álbum.
Purple Mountains é o disco mais pessoal que ouvimos desde o fabuloso Carrie & Lowell, de Sufjan Stevens (disco do ano para o Altamont em 2015). Bem, é o disco mais pessoal que ouvimos em muitos, muitos anos.
O que é fantástico e pode ser surpreendente para quem ainda não ouviu Purple Mountains é que este está longe de ser um disco deprimente. Depressivo, talvez, mas nunca gratuito, nunca opressivo, nunca sentimos o desagrado de estar a ver a tragédia dos outros desfilar à nossa frente. Isso deve-se talvez à sinceridade poética de Berman, que depurou ainda mais o seu estilo quase Bukowskiano de misturar o elevado com o mundano, o sagrado e o profano, as estrelas e a mais abjecta sarjeta, tudo condimentado com um irresistível humor deadpan. E também porque a música, aqui, não tem nada de pesado nem de claustrofóbico. É outro dos velhos truques de Berman, falar de algo muito sério com música deliciosamente agradável, e isso há por aqui em abundância.
A depressão continua com as garras afiadas bem cravadas nas suas costas, mas este novo projecto, este regresso à música, estão pelo menos a dar-lhe um motivo para se levantar de manhã. Saído o disco, haverá uma digressão – “tenho contas bastante elevadas nos cartões de crédito”, admite ele sem qualquer ironia – e, depois dos EUA e do Canadá, quem sabe se andará pela Europa. Seria uma magnífica oportunidade para ver ao vivo este idiossincrático monstro da canção e, quem sabe, para lhe dar um abraço e esperar que se sinta melhor.
A depressão é uma doença e não deve ser glorificada. Mas a depressão, a desadequação de um ser humano, deu-nos um dos discos mais profundos e mais bonitos dos últimos anos. E um sério candidato a disco do ano de 2019.
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