terça-feira, 5 de março de 2024

Tyler, The Creator – IGOR (2019)


Quem é Tyler, The Creator? Um rapazinho que cresceu de braço dado com o abandono do pai? Um rapper norte-americano que conta já com 6 álbuns lançados? Um designer louco por ténis e por tons púrpuras? Tyler, The Creator é tudo isso. E é tudo o resto também.

Será Tyler, The Creator o criador de tudo aquilo que existe?

… Será Tyler, The Creator… deus?

Sim, Tyler, The Creator é o deus criador da sua própria persona, que já anda entre nós desde 2007, aquando da cocriação do grupo Odd Future. Tyler criou-se a si próprio, mas, numa fase inicial, dependeu de outros miúdos, com quem partilhava um sonho: ver a sua música numa rádio de cariz comercial – triunfar no mundo da pop, no fundo.

(O sonho concretizou-se em 2017, quando os dois ouvidos de Tyler não conseguiram captar ao certo o número de vezes que a «sua» “See You Again”, faixa que vive em Flowerboy, passou nas estações de rádio norte-americanas.)

Os anos passaram, o pai de Tyler continuou sem lhe dar a mão, e o pequeno T cresceu, entre beats e ao lado de versos. Enquanto crescia, foi lançado música, primeiro sobre o formato de mixtapes amadoras, depois através de verdadeiros álbuns-conceito. A primeira mixtape foi a Bastard, de 2009. O primeiro álbum foi o Goblin, de 2011.

Em 10 anos muita coisa acontece. Na década que passou, Tyler lançou 6 álbuns e fez questão de se demarcar de todos os outros rappers, que hoje, mais do que nunca, são «músicos» (e com razão), escondendo-se e, ao mesmo tempo, revelando-se através de uma personalidade demasiado própria para ser descrita através de palavras. É que estamos a falar de Tyler, The Creator, não é verdade?

IGOR está no mundo, e nos nossos ouvidos, desde meados de Maio, mas parece que existe desde sempre, não fosse este «o» projeto que melhor representa a musicalidade de Tyler, The Creator, que nem sempre foi esta, como é natural.

Um jovem de 20 e poucos anos, parvo e divertido por natureza, que cresceu sem uma figura paternal, não tem como esculpir um projeto como IGOR. Um jovem de 20 e poucos anos, que esconde a ausência de um amor de um pai que não existe (e que nunca vai existir…) nas gavetas de uma personalidade extrovertida, dependente de aventuras, de travessuras e de passeios de bicicleta com os amigos, vai necessariamente reunir toda a sua raiva em faixas nas quais o mesmo tranca e destranca as suas verdadeiras emoções. Um jovem de 20 e poucos anos faz BastardsGoblins e Wolfs. Nesses projetos, Tyler, através de palavras, versos e estrofes, revela os seus medos, as suas inseguranças e os seus problemas que, injustamente, não foram por ele criados.

Mas Tyler, que sempre foi mais músico do que rapper – sim, até mesmo nesse início raivoso –, nunca teve problemas em revelar uma musicalidade e uma criatividade «vintage», cor-de-laranja, que mais parece pertencer a uma velha raposa do disco-soul e do jazz de uns Estados Unidos dos anos 70 do que a um miúdo criado na Califórnia, e educado por iPods.

É em 2015, aquando do lançamento de Cherry Bomb, que Tyler revela quem é – aliás – o que quer ser.  A transformação de rapper para músico ocorre em vários momentos de Cherry Bomb: por exemplo, na “Find Your Wings”, na “Blow My Load” ou na “2Seater”, faixas que correspondem aos momentos mais soulful do álbum e que, se comparados com as restantes passagens dessa produção (que seguiram ainda aquele padrão mais explosivo e característico da fase inicial do rapper), revelam a matéria de que é feita o coração musical de T.

É importante percebemos o que foi Cherry Bomb se quisermos compreender o que é IGOR, visto que essas duas produções são os trabalhos mais criativos que Tyler executou até aos dias de hoje. É verdade que entre eles, veio a fama e o reconhecimento (com Flower Boy), mas é tanto em Cherry Bomb, como em Igor, que vemos um Tyler mais transparente e genuíno, um Tyler que segue cegamente o seu instinto criativo musical.

Essas duas produções de Tyler são «primas». Não são iguais, claro está, mas vêm do mesmo sítio, são da mesma família, partilham o mesmo sangue. Em IGOR fica a ideia de que Tyler parece conseguir atingir aquilo que havia iniciado em Cherry Bomb, até porque as linhas condutoras dos dois trabalhos são semelhantes, apesar das diferenças óbvias aos olhos dos nossos ouvidos: ambos assentam naquele soul-jazz negro característico da costa oeste dos Estados Unidos da América.

IGOR é uma fase nova de Tyler, The Creator, que apenas existe porque as fases anteriores existiram necessariamente.

IGOR não é GoblinIGOR não é WolfIGOR não é Cherry BombIGOR não é FlowerboyIGOR é IGOR. É o próprio Tyler quem o diz. Nem sou eu, é ele e é nele em quem devemos confiar. Tyler também sustenta que este não é um álbum de rap e confirmamo-lo em 39 minutos, divididos em 12 faixas, nas quais estamos acompanhados, não só por Tyler, como também por uma vaga de talentosos músicos que, nos últimos anos, se aproximaram da loucura e da criatividade do rapper.

O álbum inicia-se com a “IGOR’S THEME” e o começo é avassalador. Nos primeiros segundos, parece que regressamos a tempos antigos, agressivos, cheios de gritos e repulsa. Notas prolongadas e assustadoras oriundas de sintetizadores e batidas potentes de bateria empurram o ouvinte para o interior da canção. Parece que a primavera de Flower Boy acaba em “IGOR’S THEME”, mas não: Tyler engana-nos e é nesse estado que chegamos à segunda faixa do álbum, “EARFQUAKE”, um dos grandes momentos do álbum, marcado pela presença de Playboi Carti.

(Lembrem-se: não estamos a ouvir um álbum de rap.)

Em “EARFQUAKE” há pianos, Tyler canta – farta-se de cantar –, o beat é entusiasmante e apaixonante (não fosse esta uma música de amor) e faz com que os 3 minutos que formam a música passem pelos nossos ouvidos de uma forma límpida e fluída, tanto que a ponte entre que liga essa faixa à seguinte, “I THINK”, é, no mínimo, fenomenal.

Em “I THINK”, Tyler admite sentir-se apaixonado, e desta vez é «a sério». O instrumental desta faixa toma o controlo do nosso coração e faz com que o nosso batimento cardíaco se confunda com o tempo da música. Neste momento do álbum, Tyler conta com a participação de Solange, que o auxilia, completando os vocais.

A terceira faixa da produção é a “EXACTLY WHAT YOU RUN FROM YOU END UP CHASING”, que não tem mais do que 15 segundos. Apesar da curta duração da faixa (é um breve interlúdio), mais uma vez, Tyler, através dos seus skills de produtor, constrói uma ponte perfeita. Entre o final da “I THINK” e o começo do interlúdio que a mesma introduz, conseguimos reparar que as notas de piano que dão a corpo a essa passagem são idênticas às que Tyler implementa na antiga “Sometimes…” (de Flower Boy).

Em “RUNNING OUT OF TIME”, a sinopse do álbum – que versa, agora indubitavelmente, sobre o tema do amor – altera-se por completo, no entanto, a musicalidade do mesmo permanece intacta e fiel a si mesma: fluída, viciante e sempre em crescente. Os vocais nesta canção, garantidos por Jessy Wilson, estão sempre no lugar certo, à hora certa e isso é obra do exclusivo produtor de IGOR… Tyler, The Creator.

Em “NEW MAGIC HAND” Tyler conta com a ajuda de Santigold, no entanto, é nesta faixa e neste momento do álbum, que a conhecida agressividade de T volta a dar a volta aos nossos ouvidos. Tyler volta a rappar, no entanto, para esse efeito, refugia-se numa voz distorcida, capaz de acelerar ainda mais a letra e o sentido da faixa, que é uma das mais explosivas de todo o projeto – lírica e instrumentalmente.

“NEW MAGIC HAND” tem um fim abrupto. Nesta fase do processo de audição, não sabemos ao certo qual é que será o rumo que marcará o registo da canção seguinte. Isto tudo em segundos. Temos pouco tempo para discernir, para assimilar o que ouvimos, pois a agressividade repentina (mas tão previsível em Tyler, The Creator), assegurada por ferozes sintetizadores, dá lugar, na “A BOY IS A GUN”, ao regresso do soul e de música tons cor-de-rosa.

O que mais marca a faixa “A BOY IS A GUN” será mesmo as linhas de baixo sobre as quais se deitam todos os outros momentos musicais da mesma. É esta faixa que me faz associar, mais do que qualquer outra, a essência de IGOR à que serve de substrato de Cherry Bomb e a razão é simples: há muito soul na “A BOY IS A GUN”; há soul nos vocais, há soul nos apontamentos de piano. Há soul em todo o lado.

A faixa seguinte, “PUPPET”, é das que chama mais atenção ao ouvinte, visto que é nessa que Tyler conta com a ajuda de génio de Kanye West, com quem até já tinha trabalhado, aquando da produção de Cherry Bomb. O instrumental é precioso e não podemos ficar surpreendidos com o mesmo (é o que dá trancar Tyler e Kanye num estúdio cheio de música e possibilidades inimagináveis). A voz de Kanye, num dos refrões, é facilmente reconhecível, algo que em IGOR é raro: os “features” que Tyler colou neste rol de canções são, por vezes, difíceis de apanhar. Em “PUPPET” estamos num momento muito bonito do álbum, visto que, é nesta faixa em específico, que a convergência das ideias de Tyler cria um plano musical nunca idealizado por ninguém – apenas por ele, claro. Em “PUPPET” há cordas, muitas cordas, que ganham especial importância a partir da segunda metade da canção, que nasce após uma transição dourada.

Em “WHAT’S GOOD” regressamos a Cherry Bomb. O beat é agressivo, Tyler está agressivo, mas nem por isso deixam os nossos ouvidos de estar equilibrados. Apesar da sua agressividade em relação a outros momentos do álbum, “WHAT’S GOOD” está onde deve estar. Aqui há muita bateria e todos os sintetizadores empregues têm a função de distorcer o sentimento da faixa. Apesar de tudo, essa agressividade esfuma-se perto do fim da canção, onde o rap de Tyler dá lugar a três notas de piano e a uma confissão – “I don’t know what’s harder letting go or just being okay with it”.

Seguem-se as faixas “GONE GONE/THANK YOU” e “I DON´T LOVE YOU ANYMORE”. Na primeira a que agora me refiro, os nossos ouvidos são invadidos por uma sensação veranil, construída por uma bateria inicial, pela voz cantada e distorcida de Tyler e por uma lírica seguramente alegre e esperançosa, algo que não é assim tão comum em Tyler, The Creator. Nesta faixa, o refrão é assegurado por CeeLo Green, que logo devolve o comando da canção aos versos cantados por T. Já nem sabemos bem em que género estamos. “GONE GONE/THANK YOU” tem mais rock do que muitas músicas que, à partida, são postas nesse lote. Em “GONE GONE/THANK YOU” há muita guitarra mesmo. E ainda bem, porque essa guitarra é o motor da canção, pelo menos da sua parte inicial. Depois de um refrão com tons de gospel e de momentos instrumentais preciosos, a voz de rap de Tyler, bate à porta – “knock, knock, knock…” – e regressa e está tudo tão bem.

Mais uma vez, a ponte que Tyler constrói entre faixas é uma verdadeira obra de engenharia musical, daí que a “I DON´T LOVE YOU ANYMORE” ainda nem começou, mas já está bem dentro dos nossos ouvidos. O título é bem explícito e Tyler parece ter finalmente decidido o que acha ser o melhor para a sua vida. Ainda assim, reina tanta incerteza naquela cabeça. Acabamos nem por dar o valor que o beat de “I DON’T LOVE YOU ANYMORE” merece, porque o nível de produção que Tyler impôs neste álbum deixa de ser, a dada altura, descritível. Os momentos finais desta faixa acabam mesmo por ser das passagens mais calmas de todo o projeto, de toda a carreira de Tyler, na verdade, e a responsável é Solange, novamente.

“ARE WE STILL FRIENDS” é a última canção do álbum e é a prova final de que acabamos de viajar nas estradas que ligam a cabeça musical de Tyler, The Creator. Na derradeira faixa, Tyler conta com a ajuda de Pharell Williams, mas importante é referir a presença do mago Al Green, que pega em Tyler ao colo na parte introdutória da faixa. Para além do mais, não nos podemos esquecer de referir a presença de Jack White, responsável, nesta faixa, pela guitarrada, que agora (mais do que nunca) é bastante amiga da musicalidade de Tyler. O início de canção lembra-nos um vinil perdido, cheio de pó, de uma qualquer cantora soul afro-americana. Sopramos o pó, o vinil fica brilhante. Metemo-lo no gira discos e colocamos, com todo o cuidado do mundo, a agulha sobre o artefacto musical. Começamos a ouvir Tyler, que surge escondido entre notas de baixo longas e prolongadas, mas que rapidamente se revela perante nós, após ter ganho força e coragem em guitarras leves e em apontamentos de sintetizadores translúcidos. “ARE WE STILL FRIENDS” é o momento mais forte do álbum, até porque… bem… é o último. Na parte final da canção, Pharell ganha protagonismo, mas rapidamente devolve-o a Tyler, que finaliza a faixa e, por conseguinte, o álbum, num momento épico e cheio de sentimento.

(Aconselho vivamente a ouvirem a “ARE WE STILL FRIENDS” num carro veloz, numa estrada inacabável, num daqueles dias de verão em que o Sol parece não querer despedir-se do céu.)

IGOR é consideravelmente o melhor álbum de Tyler, The Creator, não só porque a música que lhe está inerente tem qualidade, é reconhecida e é o resultado de um enorme misto de influências e de escolas musicais, mas, acima de tudo, porque foi bem recebido pela crítica que, reconheceu, logo de início, a criatividade e a originalidade que Tyler reservou para IGOR. Quem conhece Tyler há tanto tempo, como nós, não pode ficar surpreendido com o sucesso que o rapper, hoje (e desde sempre) músico, está a provar atualmente.

Tyler, The Creator consegue reunir em si tudo aquilo que é necessário para se ser um ícone da atual «pop culture»: tem uma musicalidade própria, inova, não sendo nunca uma cópia de um produto já feito, esforça-se, trabalha e dá-se a conhecer, tentando sempre chocar e surpreender a sua legião de fãs, que hoje se estende para lá do mundo do rap. Hoje, Tyler, The Creator é uma personalidade e exerce influência nas mais diversas áreas de convergência cultural: é designer, faz música, cria conteúdo – ele ainda vai ser diretor de cinema, vão ver (ele bem quer) e, mais do que tudo, é único.

Tyler, The Creator é o seu próprio criador, construiu-se a si mesmo, tendo por base, no início, as dificuldades da sua própria vida, que desde cedo foram superadas pela paixão que o mesmo, sozinho ou com amigos, sentiu pela música e pela arte de criar e de inovar.

Que continues a criar por muitos mais anos, Tyler.


 

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