A obra-prima dos Kraftwerk. Afinal, é possível fazer poesia com máquinas.

Os Kraftwerk são tão estupidamente influentes (toda a música electrónica lhes deve alguma coisa) que é fácil esquecer o principal: o génio intrínseco da sua música. Na sua obra, um disco destaca-se sobre os demais: o poético Trans-Europe Express. O tema principal aparece no próprio título: a linha ferroviária que no pós-guerra – ignorando ódios e fronteiras – chegou a unir 130 cidades europeias. E se há coisa que os Kraftwerk sabem fazer é traduzir paisagens urbanas em sons: na faixa-título, um comboio em movimento é cuidadosamente desenhado por baterias electrónicas e sintetizadores percussivos. Ao contrário dos hippies, que defendiam um retorno à natureza e à ruralidade, a banda de Dusseldorf era fascinada pela tecnologia moderna. Mesmo nos barulhos mais agressivos, como no chiar do rodado sobre o carril em “Metal on Metal”, os germânicos encontram beleza e poesia, uma celebração dos ruídos das modernas sociedades fabris. Bandas como os Nine Inch Nails seriam influenciadas pela sua estética industrial.

Mas nem só de comboios vive Trans-Europe Express. A lúgubre “The Hall of Mirrors” e a desengonçada “Showroom Dummies” debruçam-se sobre um segundo tema: o culto da imagem e da fama. Enquanto as canções sobre caminhos-de-ferro europeus transbordam de optimismo modernista, as faixas sobre o narcisimo dos reflexos são sombrias e pessimistas. Para os Kraftwerk, o diabo não é a máquina mas sim o espelho. No tema-título, aparece a célebre referência a Bowie: “from station to station / back to dusseldorf city, meet Iggy Pop and David Bowie”. Neste contexto, é difícil não interpretar “The Hall of Mirrors” como um comentário a Bowie e à sua obsessão pela imagem. Ao contrário do seu amigo e fã, a malta dos Kraftwerk desprezava as luzes da ribalta. A relação deles com o glam é complexa. À primeira vista, o seu gosto pelas máscaras – como a dos manequins que assomam na capa do disco – aproxima-os do movimento. Mas, por outro lado, sempre usaram essas máscaras como manobras de diversão. O glam nos Kraftwerk oculta muito mais do que revela.

Mais do que pais da electrónica, os Kraftwerk são o auge criativo da electrónica. Toda a música que surgiu na sua peugada – como a synthpop, o house e o techno – nunca conseguiu rivalizar com a elegância e o rigor dos “founding fathers”. Há neles uma sensibilidade europeia, culta e sofisticada, que os torna únicos. O groove dançável das suas batidas é funk carioca para intelectuais. Não há uma única nota a mais em Trans-Europe Express: a sua depuração minimalista é absoluta. Deveriam servir as suas texturas sintetizadas em restaurantes gourmet, no lugar de hambúrgueres gentrificados. A voz vocoder, aparentemente inexpressiva, está embargada com emoções electrónicas. A repetição maquinal dos sintetizadores dá-nos vontade de procurar postos de transformação no tinder.

Com os Kraftwerk, os alemães deixaram de ter vergonha da sua precisão maníaca: o coração cosmopolita da banda redime-os da sua perfeição fascista. E nós deixámos de fazer “piadolas” nazis com a malta do Erasmus. Os boches são gajos porreiros, afinal.