Led Zeppelin IV, o disco místico, o álbum sem nome, é o momento de consagração de deuses. Seres que re-inventaram o rock e o blues. Que brincaram com o folk e abriram as portas ao heavy metal.

A Valhalla do rock and roll acabara de receber as almas de três dos seus mais valerosos guerreiros quando, em 1971, os Led Zeppelin tomaram conta de Asgard. Os Beatles já não eram a melhor banda do mundo (porque já não eram uma banda), o mago da guitarra morrera a 18 de Setembro de 1970 e a mulher branca mais triste do blues deixara o mundo terreno a 4 de Outubro desse mesmo fatídico ano.

Há dois anos que os Led Zeppelin davam avisos de que tinham garra para dar luta aos Rolling Stones pelo título de melhor banda do mundo. Em 1969 lançaram dois dos álbuns (Led Zeppelin I e II) mais importantes da década de 60 e em 1970 mostraram que sabiam fazer muito mais do que tocar com uma pujança desmesurada (Led Zeppelin III). Mas se o temido desafio do terceiro disco foi passado com distinção, faltava mostrar que a banda não se ia encostar ao sucesso inicial e era ainda capaz de almejar por ir mais longe.

Instalados em Headley Grange, uma quinta em Inglaterra, a banda lançou-se ao trabalho. Isolados do mundo exterior – nem um mísero bar havia para John Bonham poder beber uns valentes copos -, os Led Zeppelin atiraram-se àquele que viria a ser o mais importante disco da sua carreira e um dos grandes álbuns da música pop/rock.

E o mote para o quarto disco dos Zeppelin é dado com uma das melhores canções de blues alguma vez gravadas. “Hey, hey, mama, said the way you move/ Gonna make you sweat, gonna make you groove”, desafia Robert Plant e a banda responde com um riff de guitarra sujo, uma linha de baixo pesada e o tempo bem marcado pelas baquetas mais poderosas do rock and roll. Toda a canção “Black Dog” não passa de um exercício de bravado de quatro jovens que estavam destinados a ser deuses. E que reclamavam esse lugar desde o primeiro segundo.

Nos Led Zeppelin nunca houve grande espaço para letras de intervenção, arranjos de sopros elaborados (mas se alguém os saberia fazer seria John Paul Jones) ou canções murchas. Eram quatro tipos a serem os melhores naquilo que faziam, a homenagear os que vieram antes deles e a deixá-los para trás com o som mais poderoso que conseguiam tirar dos seus instrumentos, dedos e cordas vocais. E depois de homenagearem os blues com “Black Dog”, se lembrarem dos pais do rock and roll (na canção com este mesmo título) e de gravar uma canção ao estilo da tradição anglo-saxónica e com referências ao universo J.R.R. Tolkien (“The Battle Of Evermore”), estava na hora de seguir em frente e dar ao mundo a melhor canção de rock de todos os tempos.

Depois de roubar os acordes e a sonoridade inicial à canção “Taurus” dos Spirit – e bem-dita a hora em que o fez -, Jimmy Page não se fez rogado e cumpriu o seu destino: gravou a canção mais icónica da década de 70. “Stairway to Heaven” começa com o dedilhar suave de uma guitarra acústica ao qual se juntam os acordes em tom sonhador de John Paul Jones. Depois entra a voz daquele homem. Mais bonito que Loki e mais viril que Thor: Robert Plant, o deus de caracóis dourados que, mesmo a sussurrar se mostra mais poderoso do que toda a humanidade e a cantar letras cujo significado total ainda hoje levantam dúvidas, mas que suscitam liberdade, espiritualidade e juventude. E depois… aquela entrada de John Bonham, fora da batida óbvia, em que se sente o touro a conter-se para não rasgar as peles. Ainda não é tempo, John. Mas as correntes não te vão conter para sempre.

Mais dois versos com a banda toda e é chegado o momento. O deus sol recolhe. John Bonham livra-se das grilhetas e bate nas peles como se não houvesse amanhã, Jones prepara uma base sólida. E Jimmy Page? Abre as suas asas de anjo negro e voa solo adentro, com a sua Fender Telecaster em punho e cabelo negro a descer-lhe aos cachos pela cara. O que sentiu enquanto tocava este solo pela primeira vez nunca saberemos. Mas quando um miúdo de 13 anos o ouviu pela primeira vez ficou marcado para sempre. É uma memória que tem vívida na sua cabeça, mesmo dez anos depois. Está nas experiências que lhe marcaram a vida. Como o primeiro segundo beijo, a primeira vez que viu Robert Plant ao vivo ou a primeira vez em que sentiu a namorada nua. Foi o dia em que nasceu para os Led Zeppelin, para a guitarra eléctrica e para os orgasmos musicais. Desde então que o miúdo de 13 anos anda à procura desse sentimento e, felizmente, já o encontrou várias vezes.

E, mesmo depois deste momento monstro e que marca a música do século XX, os Led Zeppelin têm mais a dar. Plant volta para mostrar que consegue voar tão alto como Page, Bonham lembra que ainda tem muita energia guardada e John Paul Jones não se impõe, mas não deixa de dar uma base forte e galopante à melhor canção dos Zeppelin. E desde então o mundo nunca mais foi o mesmo.

Seguindo em frente, rumo ao lado B, “Misty Mountain Hop” é um boogie sobre os polícias que não têm mais nada que fazer se não chatear miúdos com flores no cabelo e charros na mão – talvez 1971 não tenha sido assim há tanto tempo. Já “Four Sticks” é uma canção orelhuda, em grande medida, devido ao ritmo louco da bateria de Bonham e as passagens insólitas que fazem parecer que toda a música resulta de corte e costura de várias peças musicais.

Avançando em direcção ao fim do disco surge uma das mais tranquilas e bonitas canções gravadas pelos Led Zeppelin. “Going to California” é um tributo a Joni Mitchell (todos devíamos prestar tributo à filha preferida do Canadá) e à cultura hippie da década de 60. Canção bonita, com Page a gravar a sua primeira experiência com um mandolim. Nem todos conseguem ser incríveis à primeira.

Por fim, “When The Levee Breaks”, uma das mais magníficas malhas deste mundo e do próximo. Um blues clássico completamente deformado por técnicas de estúdio. Desde a bateria que parece ocupar todo o espaço da gravação, ao mesmo tempo que soa abafada, à harmónica distante, a voz arrastada de Plant e a guitarra dissonante de Jimmy Page. Se o disco abre com um blues clássico, fecha com o mais atípico exemplo deste género.

Led Zeppelin IV, o disco místico, o álbum sem nome, é o momento de consagração de deuses. Seres que re-inventaram o rock e o blues. Que brincaram com o folk e abriram as portas ao heavy metal. Seres míticos que nos permitem ser felizes com as suas dádivas. Não somos dignos, mas eles não se importam. Os deuses são magnânimos.