De todo o património da música brasileira, Clube Da Esquina é incontestavelmente um dos trabalhos mais reconhecidos, fruto de uma geração e de um tempo próprio.

Há projetos que constituem autênticos «antes e depois», tamanha é a revolução que provocam nos nossos ouvidos, na nossa vida. O LP Clube da Esquina do grupo com o mesmo nome – Clube da Esquina – pode ser considerado um exemplo certo desse mesmo fenómeno. Isto, claro, se forem discípulos incondicionais da música popular brasileira (também conhecida por MBP). Mas Clube da Esquina extravasa as fronteiras musicais brasileiras: hoje, 47 anos depois, é aclamado por toda a crítica como um dos álbuns mais importantes de todo o universo musical – e não apenas do brasileiro.

Apesar da sua fidelidade à cultura musical das terras de Vera Cruz, Clube da Esquina é um álbum que pertence ao mundo; é um epicentro de criatividade para onde convergem diversas linhas de influência, todas elas diferentes entre si – no álbum, em jeito de exemplo, encontramos correntes de jazz, de rock (progressivo e psicadélico), de música latina e também da já referida música popular brasileira, entre tantas outras.

A história do grupo Clube da Esquina resultou de uma amizade entre os eternos Milton Nascimento e Lô Borges, dois dos pontos cardeais da cultura musical brasileira. A essa amizade juntou-se a irmandade de Lô com os seus irmãos, Marilton e Márcio. O conjunto, porém, foi também formado pelos músicos Flávio Venturini, Vermelho, Tavinho Moura, Toninho Horta, Beto Guedes e ainda pelos liricistas Fernando Brant, Ronaldo Bastos e Murilo Antunes. Claro que tantas cabeças musicais juntas iriam acabar por criar algo maravilhoso.

Numa primeira apreciação, geral e abstrata, Clube da Esquina é um disco longo, sendo construído por 21 faixas, sendo que a maior parte das canções tem uma duração superior a três minutos. O álbum é, por isso, uma viagem completa, onde o ouvinte fica encurralado entre uma lírica sensível e poética e uma instrumentalidade rara e genial.

A primeira faixa do álbum é a “Tudo O Que Você Podia Ser” e serve de amostra para o que o resto do álbum constitui. É o famoso violão que dá ordem de partida numa música que, inesperadamente, muda de figura, ganhando contornos celestes.

A segunda faixa é a “Cais”; a terceira, que já conta com a efetiva participação de Lô Borges, é a “O Trem Azul”, canção que se integra no lote das que mais marcaram o projeto em análise. É humanamente impossível o ouvinte não se deixar levar pela melodia, leve e límpida, conduzida pela voz de Lô, que dá substância a uma lírica preciosa.

Entre canções, inscrevem-se interlúdios. Encontramo-los nas posições número quatro – “Saídas e Bandeiras Nº1” –, dez – em “Estrelas” – e também na quinze – “Saídas e Bandeiras Nº2”. Estas pequenas passagens cumprem, claro, o seu devido papel pois surgem como verdadeiros conectores entre canções, tornando o correr das águas do projeto límpido e transparente.

De modo a perceber o “porquê” da substância deste projeto, devemos ter em conta a época em que o mesmo foi produzido. Estávamos em 1972. Os Beatles tinham acabado de revolucionar o mundo, tendo impulsionado centenas, milhares até, de músicos a inovar, a fazer música. A influência dos Beatles chegou ao Brasil e aterrou na sensibilidade musical de Milton e de Lô – que, na altura e nos tempos que se seguiram, fizeram questão de vincar a sua devoção à banda de Liverpool.

Um dos grandes momentos do álbum surge na faixa “Um Girassol Da Cor Do Seu Cabelo”. Para além da exímia produção e dos arranjos que compõe a canção (levados a cabo por Eumir Deodato), “Um Girassol Da Cor Do Seu Cabelo” triunfa pelos sentimentos que faz explodir na consciência do ouvinte. Triste, nostálgica, intensa, assim podemos descrever esta faixa imortal.

Cumpre referir a faixa número onze, uma das mais belas do projeto. É a “Clube da Esquina Nº2”. Não adianta tentar descrever a melodia da mesma, a sério: importa apenas não esquecer que, anos mais tarde, em 1978, o Clube da Esquina lança o seu segundo projeto… intitulado “Clube da Esquina Nº2”.

De seguida, seguem-se as canções “Paisagem da Janela” (com o cunho pessoal de Lô Borges) e “Me Deixa Em Paz”, essa que constitui um autêntico regresso, dentro do álbum, à bossa nova dos tempos antigos; nota para a cantora Alaíde Costa, que surge nessa faixa.

Entrando na reta final do álbum, vejo-me obrigado a referir a “Um Gosto de Sol”, marcada por um arranjo de cordas arrepiante, que surge acompanhado por notas de piano graves e contínuas. Há ainda a “Pelo Amor De Deus”, que é, talvez, a experiência mais psicadélica de todo o projeto – os Beatles estarão, com certeza, orgulhosos do que Milton, Lô e companhia alcançaram em dois minutos e seis segundos.

Cometeria um crime gravíssimo se me esquecesse de referir a guitarra que irrompe na “Trem De Doido”. Nessa, é Beto Guedes quem doma esse instrumento; Toninho Horta controla o baixo e Rubinho está concentrado na bateria. Quem canta? Lô Borges. É que se estivermos distraídos… vamos pensar que os Led Zeppelin são brasileiros.

As últimas duas faixas do álbum fecham-no na perfeição. Em “Nada Será Como Antes”, deparamo-nos com um ritmo contagiante, sensual em grande medida, nascido de um casamento perfeito entre o rock e a música popular brasileira. Vale a pena voltar a referir a influência que aqueles quatro músicos vindos de Inglaterra exerceram neste conjunto brasileiro; “Nada Será Como Antes” é prima de “Getting Better”, acreditem.

E assim chegamos a “Ao Que Vai Nascer”. É incrível como Clube da Esquina acaba da mesma forma como começou: de maneira inesperada, respeitando, porém, um certo padrão que, pautado por uma enorme criatividade musical, acompanha quer o ouvinte, quer o músico ao longo de todo o álbum.

É o fim de uma viagem a uma época que já não volta mais, mas que, no entanto, este conjunto de músicos, que eram também amigos, conseguiu cristalizar em pouco mais do que uma hora.

E porque as capas dos trabalhos também constroem um projeto musical, cumpre referir a história por detrás dos dois miúdos que figuram na capa deste LP. Dou-vos a conhecer o Tonho e o Cacau. Na altura, como tantos outros miúdos, estavam a brincar na rua, a jogar à bola talvez. O fotografo Cafi (Carlos da Silva Assunção Filho) é o autor da fotografia. Segundo o mesmo, o retrato é a «cara do Brasil». Muitos foram (e talvez sejam) aqueles que achavam que os dois miúdos eram, na verdade, Milton e Lô infâncias atrás. Mas não. A identidade de Tonho e Cacau só veio a ser revelada 40 anos depois, através de um trabalho de pesquisa levado a cabo pelo jornal Estado de Minas.