segunda-feira, 22 de julho de 2024

The Beatles – The Beatles [White Album] (1968)

 

White Album não é só um grande clássico cheio de canções imortais. É o cânone a partir do qual todos os álbuns-duplos são medidos.

Bowie ficou conhecido pelas suas perpétuas ch-changes, mas antes dele já os Beatles mudavam o jogo da pop como quem muda de camisa. Ora, vejamos. Se em ’66 e ’67, os fab four lideram a revolução psicadélica com os caleidoscópicos RevolverSgt. Pepper’s Magical Mystery Tour, quando chegam a ’68 já não querem ver o psicadelismo nem pintado. Onde Sgt. Pepper’s é colorido, alucinogénico, coeso e super-produzido, White Album é branquíssimo, abstinente, fragmentado e frugal. Tudo nele é um regresso à tradição, à simplicidade e desordem criativa, uma declaração de guerra ao perfeccionismo de estúdio dos discos anteriores. Aliás, é esse o espírito do tempo: Dylan, The Band, Creedence Clearwater Revival, todos reagem aos excessos psicadélicos do Summer of Love, reclamando um retorno às raízes.

A maior parte das canções do White Album foi escrita num célebre retiro espiritual nos Himalaias, à viola e sem a cabeça encharcada em LSD (que o mestre Maharishi não o permitiria). A parte da viola explica a prevalência dos temas pastorais e acústicos (baladas lindas de morrer como “Blackbird”,  “I Will”, “Julia”, “Mother Nature’s Son” e “Long, Long, Long”). Donovan teve aqui um importante papel, pois, compincha no dito retiro, fez questão de ensinar alguns dedilhados folkie aos seus camaradas.

Toda a mitologia do rock’n’roll é organizada à volta do poder criativo do excesso. Pois bem, a experiência de Rishikesh diz o contrário. A meditação e a abstinência potenciaram, afinal, a criatividade. Nunca antes os Beatles tinham escrito tantas canções em tão pouco tempo, de tal maneira que apenas um disco não é suficiente para as albergar. “Back in the USSR”, “Revolution” e “Happiness is a Warm Gun” são apenas alguns dos seus clássicos intemporais.

White Album quebra um segundo mito: o de que as melhores obras surgem quando a cumplicidade dentro da banda é maior. Ora, se há coisa que caracteriza a gravação deste disco é justamente o ambiente de cortar à faca que se vivia em Abbey Road. É fácil responsabilizar o emplastro japonês pelo ar irrespirável (Yoko Ono não arredava pé por um segundo, para grande desconforto de todos os Beatles que não dormiam consigo) mas as coisas são mais complexas do que isso. Ringo fartou-se das críticas do pequeno ditador McCartney e abandonou a banda durante uns tempos. Harrison ressentia-se cada vez mais do estatuto secundário a que Lennon e McCartney sempre o relegaram. É sintomático o facto de, mesmo num disco-duplo com três dezenas de canções, só haver espaço para quatro temas seus. Para se vingar, uma delas é “My Guitar Gently Weeps”, talvez o tema mais icónico do White Album (imortal o solo aveludado de Clapton!).

John, Paul, George e Ringo.

Mas, mais importante que essas quezílias, há o efeito do próprio crescimento e individuação criativa de cada um dos BeatlesWhite Album é o gang de outrora a fragmentar-se, quatro personalidades muito diferentes a reivindicarem a sua própria voz. De tal forma assim foi que até Ringo teve direito a uma canção sua: o country (bastante decente, diga-se) de “Don’t Pass me By”. A abundância de estúdios disponíveis também ajudou: Lennon, McCartney e Harrison puderam ir gravando os seus temas em paralelo, envolvendo os outros apenas no fim (como se fossem músicos de sessão). Aliás, há mesmo canções que foram gravadas com apenas um Beatle ao leme: é o caso de “Julia” (Lennon) e “Blackbird” (McCartney).

A fragmentação do White Album não decorre apenas do individualismo dos seus songwriters. Mesmo dentro do universo de cada um dos autores, há uma propensão esquizofrénica para a diversidade. Veja-se o caso de McCartney, que tanto retrocede ao music hall dos anos 20 (“Honey Pie”) como imagina o metal do futuro (“Helter Skelter”); que tanto se passeia pela candura pop de “Ob-la-di, Ob-la-da” como logo chafurda no blues obsceno de “Why Don’t We Do It in the Road?”.

George Martin não gostou da caldeirada, advogando uma triagem dos temas mais fortes para um único disco. Os Beatles disseram “não” e ainda bem, pois é precisamente essa caótica dispersão que lhe dá charme e identidade, sempre coerente na sua incoerência, e com um gosto especial pelos súbitos contrastes. Veja-se a forma como o disco acaba: depois da indigestão avant garde de “Revolution 9” vem a doçura natalícia de “Good Night”!

É verdade que o White Album não é o primeiro disco-duplo da história. Dylan, por exemplo, precedeu-o em dois anos com o seu inventivo Blonde on Blonde. Mas os Beatles levam ao limite as possibilidades do formato, de tal forma que a sua fórmula “vale tudo menos arrancar olhos” tornou-se mesmo a matriz-padrão para o desenho de um álbum-duplo, seguida religiosamente por dezenas de discípulos (Physical Grafitti dos Led Zeppelin e London Calling dos Clash são dois exemplos célebres). Os clássicos gravados entre ’66 e ’74 são cruciais justamente por isso: criaram um cânone para as gerações seguintes. Não há como fugir: sempre que alguém procurar o génio melódico no meio da desordem e da imperfeição, a referência do álbum branco é incontornável.


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