A estreia dos The Jam, juvenil, acelerada, enérgica, inseriu-os nos livros do punk, mas o seu som e a sua filosofia nunca quis ou conseguiu romper com as raízes do rock n roll

Há termos que supostamente definem um género, um som, mas que na verdade não captam mais que uma cena, um momento, um local e o seu ambiente. É o caso do grunge, por exemplo, com maior disparidade sonora entre as várias bandas do que o termo poderia sugerir. E é esse, ainda mais, o caso do punk, usado para definir a injecção de adrenalina vivida na segunda metade dos anos 70,  dos dois lados do Atlântico. É por isso que, se todos concordamos que os Sex Pistols são “A” banda punk, pela força, pelo imaginário e até pelo seu final prematuro e trágico, se encaixam na mesma categoria coisas tão díspares como Talking Heads e Clash, Blondie ou Buzzcocks, Pistols e The Jam.

Estes, que hoje nos trazem aqui, partilham com essa troupe alguns elementos comuns, é certo. A começar naturalmente pela época, em que surgiam bandas como cogumelos, apostando em ritmos rápidos e razoavelmente primários, de guitarra em punho e dentes cerrados na boca pronta a cuspir. O primeiro disco dos Jam, este In the City, sai para as lojas em 1977, bem no meio da primeira e poderosíssima vaga punk britânica. Depois, há a atitude juvenil, a testosterona de garotos que querem comer o mundo inteiro num trago bem lançado. E a rapidez das guitarras e da bateria, claro. É fácil perceber porque é que os The Jam, dessa altura, foram emparedados no hall of fame do punk, quer o quisessem quer não.

Na verdade, há tanto que os aproxima do punk como aquilo que os afasta. Mesmo no disco de estreia há um sentido melódico ausente na esmagadora maioria dos hinos raivosos de então (há coros e tudo!). A estrutura é a mesma do rock n roll, apenas aqui e ali mais acelerada. E, o cúmulo, enquanto os Pistols e os Clash andavam de roupas rasgadas e casacos de cabedal, os The Jam apareciam sempre de fato e gravata. Pior, devido à paixão pelos mods, a Union Jack era representada não com ironia, mas com orgulho.

A cena punk foi, afinal, a última e a mais inspiradora de várias que a banda fundada e liderada por Paul Weller atravessou desde a sua formação, em 1974, ainda como quarteto. Nesses tempos, o alimento e a inspiração eram o rock n roll americano de Chuck Berry e Little Richard, que mais de uma década antes haviam fascinado os Beatles, entre tantos outros. Seguiu-se uma fase Mod, via The Who, que Weller adorava, e ainda outra, brincando com a Motown e os sons da Stax Records. Era um jovem, e a sua banda, à procura da sua personalidade. Em 1976, com 18 anos, Weller viu os Pistols ao vivo, e o punk acabou por se infiltrar na personalidade anterior do grupo. Foi mais um condimento, digamos assim, não tomando conta de tudo e sim misturando-se com o que já lá estava.

In the City é, assim, o resultado dessa estranha alquimia. É um disco juvenil, enérgico, bem mexido, mas a grande matriz talvez seja o som de Pete Townshend, dos The Who, mais do que de Mick Jones, dos Clash. O punk dos Jam valorizava a mensagem de juventude, de mudança, de mudança através dos jovens, mais do que um panfleto de destruição e de anarquia, que nunca esteve nos livros de cabeceira de Paul Weller. Este, no fundo, queria ser Townshend, o herói da geração anterior, e não destruí-lo.

Daí que os Jam nunca se tenham efectivamente integrado no grupo dos punks. Ficou célebre uma digressão em 1977, quando o grupo tinha acabado de gravar In the City e assinado um chorudo contrato com a Polydor. Apanharam boleia dos Clash na infame White Riot Tour, juntamente com os Buzzcocks, Subway Sect e The Slits, mas vieram-se embora a meio. Pouco dinheiro, fracas condições de viagem e alojamento e péssima qualidade de som foram as razões apontadas. Uma coisa muito pouco punk de se fazer.

In the City é, assim, um contributo mais melodioso para a colheita britânica desses anos. O tema homónimo é todo ele ginga juvenil, enquanto “Away from the numbers” mostra uma banda que não tem medo de fazer uma quase-balada, uma bela música pop. Mas temos também “Batman Theme”, sim, da banda sonora da série televisiva, que os The Who também tocaram em palco algumas vezes e cujo carácter cartoonesco não transporta, na versão dos The Jam, qualquer ironia.

Tal como acontecera até à edição desse disco, os Jam continuariam a evoluir, a mudar o som, a explorar e a incorporar as suas influências. All Mod Cons, o seu terceiro disco, de 1978, já tem uma sonoridade mais formada, mais The Jam, e claramente menos punk. Não espanta que, em 1983, Weller tenha formado os Style Council, dando asas à sua paixão pela soul, numa versão muito branca e britânica, admita-se.

Paul Weller, que continua a lançar discos com muita frequência, nunca se acomodou. É, desde o princípio, um cronista de Inglaterra, e talvez por isso aí seja idolatrado e bastante ignorado em quase todo o resto do mundo. Talvez seja por isso, pelas suas letras e pela sua constante procura – sempre dentro do grande cânone do rock, pop e soul, sem grandes experimentalismos – que ainda por aí ainda, quando quase todas as outras figuras da sua geração ou desapareceram ou ganham a vida com versões pálidas das bandas que lhes trouxeram fama, há 40 anos.

In the City é um dos documentos, o primeiro, dessa quiet revolution, de gravata e bons fatos, que Weller – que influenciou gente como os Gallagher ou Richard Ashcroft, entre muitos outros – continua a fazer. Na verdade, é punk ou outra coisa? It’s only rock n roll, e nós gostamos.