No More Heroes é uma obra-prima do punk de culto, do punk erudito, do punk que pisou as linhas de vários géneros musicais, mesmo que muito moderadamente, sem no entanto perder a essência explosiva do movimento que ajudou a cimentar. É, sobretudo, uma obra-prima da fase inicial de uma banda que soube entender o tempo que habitou.

Os Stranglers sempre foram um caso à parte na história da música punk. Muitas razões justificam essa separação em relação ao grosso do movimento, mas uma em particular merece natural destaque: os seus membros tinham escola e treino enquanto músicos. Ou seja, sabiam tocar verdadeiramente. JJ Burnel era experiente em guitarra clássica, embora na banda fosse o (enorme) baixista de serviço, Hugh Cornwell vinha dos blues, Jet Black do jazz e Dave Greenfield parecia vir de outro planeta, teletransportado pelos magníficos sons que conseguia retirar do seu keyboard. O som da banda teria, portanto, de ser diferente das restantes, e para melhor. Basta colocar a agulha alguns segundos em qualquer um dos míticos sete discos iniciais para se perceber o que dizemos. Eram, de facto, muito bons! Dito isto, e depois de muito ponderarmos sobre o disco de 1977 que deveríamos escolher para constar neste Especial Punk, decidimos retirar No More Heroes da capa para o metermos a tocar. Rattus Norvegicus ficou a reclamar. Compreende-se, mas só poderíamos escolher um. De qualquer das formas, ambos os discos são importantes e fundamentais. Referir os dois, embora destacando mais No More Heroes é já menção honrosa suficiente. Sigamos em frente, então.

No More Heroes foi um sucesso comercial e também um disco decisivo para cimentar o estatuto de banda punk de culto que os Stranglers foram granjeando. O álbum chegou ao segundo lugar do top Britânico e nele permaneceu durante mais de um trimestre. A canção mais icónica da banda (sim, isso talvez dependa do gosto de cada um, mas não andaremos muito longe da verdade) encontra-se nele e dá, inclusivamente, nome ao disco. Quem não reconhecer “No More Heroes” logo aos primeiros segundos, certamente não terá andado por este mundo nos últimos quarenta anos. Mas o disco encerra várias outras composições marcantes na carreira da banda, como “Something Better Change” ou “I Feel Like a Wog”. Se pegarmos apenas nestas três, percebemos que No More Heroes (o álbum) alinha um certo conceito de protesto. A marginalização, por exemplo, é tema presente, à boa maneira punk. No entanto, é impossível não perceber que a grande originalidade da banda reside sobretudo no caráter melódico dos seus temas e na soberba qualidade interpretativa dos seus membros. As inesquecíveis linhas de baixo de JJ Burnel, a poderosa voz de Hugh Cornwell (ora cantando, ora falando), os loucos e voadores arpejos das teclas de Dave Greenfield e a competência de Jet Black estavam claramente à frente do seu tempo. Nunca se ouviu uma banda punk assim em 1977. Eles tinham um pé assente na urgência furiosa do punk, mas flertavam com outras estruturas musicais. Os The Stranglers souberam lidar muito bem com a implosão provocada pelos backgrounds musicais dos seus componentes, gravitando no estilo escolhido e emblemático da época (o Punk Rock), embora também gravitassem livremente e com óbvio proveito pelos seus arredores.

Para além dos já mencionados, são ainda alguns outros os temas diretos e certeiros ao coração punk dos ouvintes. Repletos de garra e adrenalina, passemos os ouvidos, por exemplo, por “Bitching”, “Bring On The Nubiles”, “Burning Up Time” (autêntica descarga de energia, quase ao ponto de fazer explodir um qualquer amplificador inocente ou uma coluna menos preparada) ou ainda por “English Towns” para percebermos que No More Heroes é claramente um produto do seu tempo, mas com qualidade gourmet, se assim quisermos dizer.

No More Heroes é um disco incendiário, embora sem a histeria convulsiva e inconsequente de muitos outros produzidos e lançados no boom punk daquele período de tempo. A classe que nele reside resistiu aos (mais de) quarenta anos que já tem e apresenta-se hoje são como um pêro. Por isso o escolhemos. Por isso é sempre bom voltar a ele.