Heaven and Earth é um bálsamo para os ouvidos e para a mente, mais um marco muito relevante de um dos mais ambiciosos e talentosos músicos dos últimos anos.

O norte-americano Kamasi Washington entrou com tudo na cena musical mundial em 2015, com a edição de The Epic, um mastodonte de qualidade e quantidade que foi considerado pela redação Altamont como o quarto melhor disco desse ano.

Tal como outros companheiros que fizeram com Kendrick Lamar a grande aventura de To Pimp a Butterfly, Kamasi é, desde então, um dos grandes pontas de lança da reafirmação do jazz como forma musical de excelência, entreabrindo as portas de um mercado mais alargado sem nunca cair no facilitismo ou na diluição da sua arte, o que não é, de todo, fácil.

Depois de ter rebentado tudo com The Epic, o saxofonista lançou, no ano passado, o também muito recomendável EP Harmony of Difference, para voltar em 2018 com este Heaven and Earth.  Aqui, regressa ao modus operandi dessa sua obra anterior. Temos carradas e carradas de música (à volta das três horas!), um espírito conceptual que perpassa todo o trabalho, aqueles gigantescos coros, cordas, melodia e improviso aventureiro.

Comparando os dois trabalhos, algo que é inevitável, Heaven and Earth é talvez ligeiramente menos clássico do que The Epic, com mais algum espaço para contaminações modernas  e até algum flirt de bom gosto com alguma pop de série B. Mais do que saxofonista, Kamasi Washington é sim um grande bandleader, arranjador, compositor, criador de obras completas, desde o conceito à execução. Bastaria The Epic para se assumir isso, mas este novo disco vem só reforçar o que já se sabia: aquilo não foi um acidente feliz, mas sim a primeira grande mostra de um artista profundo, relevante e que não deixa nada ao acaso.

Há até quem critique isso mesmo. Algum excesso de ambição, o eventual predomínio do planeamento ao milímetro em detrimento da pura emoção da descoberta, a conceptualização acima da aventura. São argumentos compreensíveis, mas que não nos conquistam. É fácil ser cínico, é fácil apontar o dedo a quem nos atira três horas de música para cima de cada vez, tipo “mas quem é que este gajo pensa que é?”. Não conseguimos pensar assim. Preferimos destacar a ambição de quem não quer viver na espuma do dias, no single featuring não sei quem. Kamasi parece convencido ser uma espécie de Moisés negro, o grande profeta do jazz no século XXI. Há talvez gente melhor, mais aventureira, até tecnicamente mais revolucionária. Mas não há ninguém, neste momento, a fazer monumentos tão completos, tão profundos, tão bem feitos e tão bonitos como este tipo. O resto é conversa.

Heaven and Earth não foge à obsessão de Washington com os conceitos. O primeiro disco, Earth, representa a forma como o músico vê o mundo exterior; Heaven o modo como o vê interiormente, segundo a descrição do próprio. Na verdade, não há apenas dois discos, mas sim três. Na versão em CD, um terceiro vem escondido dentro da embalagem, tendo de ser retirado cuidadosamente com uma faca (podem ouvi-lo mais abaixo, tendo sido colocado autonomamente no Spotify como The Choice). Ouvindo o trabalho, esta distinção temática não é algo fácil de identificar. No meio de tanta música emocionante, exploratória e envolvente, rapidamente nos deixamos levar. Isto para dizer que chega a um ponto em que não é fácil distinguir a identidade de um ou outro disco. Nem isso interessa, sejamos francos.

Heaven and Earth é para ser consumido como um todo. Um bálsamo para os ouvidos e para a mente, mais um marco muito relevante de um dos mais ambiciosos e talentosos músicos dos últimos anos. Não tem, claro, o efeito-surpresa de The Epic, mas também tem música de qualidade para dar e vender.

O Guardian descrevia Kamasi Washington como “jazz para quem não gosta particularmente de jazz”, fazendo questão de salientar que isto não era, de todo, pejorativo. E tem toda a razão. É que não só isto é muito mais do que apenas jazz, há um sentido melódico que consegue ao mesmo tempo habitar uma vaga estrutura de canção e carregar em si tudo o que o jazz tem de bom.

E isso, hoje em dia, é muito mais do que poderíamos exigir.