A grande questão, se assim quisermos colocar as coisas, será perceber se I Sometimes Dream of Glue deve ser entendido como mais um disco do ex-líder dos The Auteurs, ou se deveremos olhar para esta obra como um pequeno livro de contos. Parece estranha a dúvida? Não, nada disso. Quando se trata de Luke Haines, nada nos deve espantar.
De facto, Luke Haines é um dos mais improváveis tesouros das terras de Sua Majestade. Musical, como sempre soubemos, mas também literário, uma vez que Luke Haines foi escrevendo, ao longo dos tempos, vários livros de bom valor. No entanto, o seu mais recente trabalho faz por combinar ambas as coisas. Música e história (no sentido ficcional do termo e de forte pendor narrativo) cruzam-se em I Sometimes Dream of Glue. Não é a primeira vez que tal coisa acontece, e estamos em crer que não será a última. Os enredos, tanto os anteriores como este mais recente, são sempre inusitados, peculiares, tirados de uma cabeça em constante sobressalto criativo. É bom estarmos preparados para quando um novo trabalho de Luke Haines nos surge. Por muita imaginação que tenhamos, ficamos sempre muito aquém da realidade proposta. É a lei de Haines a mostrar uma vez mais as suas idiossincrasias.
Num disco muito acessível, talvez mesmo o mais acessível dos últimos anos, a mente criadora por detrás dos The Auteurs imaginou uma narrativa complexa e divertida ao mesmo tempo. Por volta de 1940, um conjunto de camiões dos Serviços Especiais Britânicos transportava um líquido peganhento e mortal que tinha como destino a Alemanha. Deveria ser derramado por via aérea no país de Hitler, mas tal nunca veio a suceder, muito provavelmente por questões de sabotagem da delicada operação. O que aconteceu, isso sim, poderá ainda hoje estar visível aos olhares menos míopes. Nos arredores de Londres, há uma minúscula cidade chamada Glue Town com cerca de 500 habitantes, cada qual com cerca de 63,5 milímetros de altura que resultou do derramamento do fatal líquido atrás mencionado em local não desejado. Ao que parece, esses habitantes encolheram devido a esse cruel produto, vivendo da dieta desse estranho produto solvente e ainda da prática frenética de sexo. Não lhe contamos o resto da história porque isso fará parte do divertimento que sentirá ao ouvir I Sometimes Dream of Glue que nós, naturalmente não queremos estragar. Vale a pena.
Do ponto de vista musical, o mais recente longa duração de Luke Haines parece ter sido feito um sem grandes pretensões. Não aspira a hits nem a tops, seguramente. Os 14 temas que o preenchem são de uma simplicidade absoluta. Melodias simples, ritmos quase apáticos, embora rico em elementos “pastorais” (flautas em abundância em alguns temas do álbum dão esse tom à generalidade do disco). Na verdade, I Sometimes Dream of Glue é uma disco narrativo e pouco mais do que isso. A voz mais falada do que cantada (embora tal coisa apenas se verifique em algumas canções) de Luke Haines encarrega-se de narrar os vários acontecimentos ficcionais que consubstanciam o disco em questão. Não há temas que se destaquem, uma vez que parece clara a ideia de que o todo terá de prevalecer sobre a soma das partes.
I Sometimes Dream of Glue poderia ser a banda sonora de um pequeno filme / doumentário de animação, por exemplo. O imaginário cinematográfico do trabalho leva-nos a “assistir” a um incomum enredo na nossa cabeça enquanto ouvimos o que Luke Haines inventou desta vez. No entanto, o disco está uns pequenos furos abaixo dos recentes e vigorosos Smash The System (2016) ou de New York in The ’70s (2014), mas ouve-se com agrado, sobretudo se se insistir em repetidas audições.
Deixe-se surpreender por mais esta fatia sonora da arte de Luke Haines. Contar histórias é também uma forma digna de fazer música, por isso acho que valerá a pena arriscar. Não é necessário o uso de máscaras de oxigénio ou afins (não nos esqueçamos do assunto do disco), por isso pode avançar de forma segura neste I Sometimes Dream of Glue.
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