O eterno guitarrista dos Smiths regressa com o seu terceiro trabalho a solo, um disco inventivo, ambicioso e que traz como bónus a que poderá ser a grande canção do ano.

Não deve ser fácil para um artista que continua a produzir material novo estar sempre a ser lembrado de um projecto que, no grande arco da vida, já está lá muito para trás. É assim, naturalmente, com Johnny Marr, mais ainda do que com Morrissey. Se este último arrancou rapidamente e em força uma carreira a solo após o fim dos Smiths, e se manteve no radar via grandes músicas e grandes polémicas, o mesmo não sucedeu com Marr.

Depois do fim da banda da vida de muita gente, o guitarrista e escultor do som Smiths foi trabalhar undercover. Possivelmente o maior guitarrista da sua geração no Reino Unido dedicou-se a ser músico de estúdio e emprestou a sua guitarra, e apenas isso, aos Pretenders, aos Modest Mouse, aos The The e a vários outros projectos. Após a loucura dos Smiths e a forma conflituosa como estes terminaram, Marr parecia estar contente – e até desejar – em ser apenas mais um músico contratado. Isso mudou nesta década, com o guitarrista a editar três discos em nome próprio e a escrever – tal como o mais dramático Morrissey – a sua autobiografia, Set the Boy Free, de 2016.

A vida de Marr estará sempre ligad aos Smiths, e é também por isso que os seus discos são escutados quando saem, não vale a pena negar. Mas a verdade é que os Smiths duraram cinco anos, e acabaram há…mais de 30. É altura de olhar para a frente.

Este Call the Comet é o terceiro registo a solo de Marr, e é o seu trabalho mais ambicioso. É vagamente conceptual, uma distopia que serve de manifesto político e de refúgio para um homem de esquerda de Manchester, filho de pais ingleses da classe trabalhadora. Marr nunca foi tipo de grande rasgo nas letras – nem grande vocalista, diga-se – pelo que é na música que a ambição se revela.

Call the Comet é um óptimo disco de guitarras, que dispara em várias direcções, mostrando o arsenal estilístico de alguém que será sempre identificado pelos riffs e pelos rendilhados pop dos anos 80.

Na verdade, depois de se ter atirado à sua autobiografia, algo se desbloqueou dentro de Marr, que já não está a fugir dos Smiths. Alguns dos momentos mais altos deste disco são, efectivamente, temas que vêm exactamente dessa matriz. Às vezes de forma descaradíssima, como em “Hi Hello”, decalcado de hinos como o inesquecível “There is a light that never goes out”; outras, de forma um pouco mais discreta, como em “Day in Day out”.

A aventura não está aqui, mas sim o prazer e finalmente a libertação de voltar onde já sei foi muito feliz. Mais, “Hi Hello” é coisa para ser a maior canção do ano (e sim, não conseguimos deixar de imaginar o que seria este portento na voz de Morrissey).

A exploração está, por exemplo, no industrial quase kraut de “New Dominions” e de “Actor Attractor”, com direito a sintetizadores e tudo; na longa “Walk into the sea”, que se vai desenrolando, crescendo e mudando de direcção sem nunca perder o norte; na acelerada e negra “My eternal”; e na tensão de “The Tracers”; entre vários outros exemplos.

É claro que há também aqui a pop escorreita que em Marr é tão natural como beber água, sendo disso prova a boa malha que é “Hey Angel”.

Call the Comet é um disco ambicioso, intenso e profundo, que se vai revelando com cada nova escuta. Uma última palavra para a produção: absolutamente impecável, com todos os pormenores no sítio, cortesia do próprio Marr, que anda há muitas décadas a virar frangos.

Voltando (tem de ser) aos Smiths, Morrissey chamará sempre mais a atenção. Mas Marr, com este álbum, mostra que, do duo criativo dessa saudosa banda, é ele quem arrisca, quem soa confiante, quem tem mais truques para mostrar, hoje em dia. Demorou a soltar-se, mas os próximos capítulos da sua carreira vão certamente merecer a nossa atenção.