O segundo álbum de Conan Osiris, Adoro Bolos, é uma viagem surreal por uma miscelânea de géneros que injeta uma lufada de ar fresco há muito silenciosamente requisitada no panorama da música alternativa nacional, e é um produto que obriga o próximo a ouvi-lo não só agora mas também no futuro próximo e distante.
Ponto primeiro; o panorama da música dita alternativa em Portugal, por vezes, e mesmo tendo de atravessar o perigoso território da larga generalização para concluir a primeira frase desta crítica, é um deserto estagnado com fotocópias de fotocópias em rebuliço pela aridez do seu terreno, como fardos de palha no faroeste. Pelo menos no que toca aos nomes que mais facilmente pulam para a frente dos olhos do público que menos investe e investiga, às vezes o inventário de bandas disponíveis assemelha-se a uma lista de sonoridades que se confundem não apenas com influências óbvias e pouco camufladas de álbuns e canções estrangeiras que lhes foram ficando no ouvido, mas também umas com as outras, num estranho e curioso processo de meta-cópia interna cíclica e sem fim à vista. Mas tudo isto são generalizações; porque, para cada cem que decidem fazer música neste pequeno pedaço de terra a cair para o Atlântico que tem quase vergonha de sair debaixo das saias não só do que se faz lá fora mas também dos irmãos mais crescidos que fazem o que se faz lá fora, existe um que cerra os dentes e se recusa a meter-se na fila para ser apelidado “o não sei quantos português” ou “o novo não sei que mais”. Arrojado e discreto, sábio na sua teimosia, pega num par de tesouras e recorta-se a si mesmo para fora da tendência estabelecida, armado apenas de uma boa dose de coragem e de uma confiança inabalável num universo sonoro que não cabe em nenhuma das caixas que lhe dão a escolher quando decide ser músico. Se no mundo não há assim tantos, em Portugal ainda menos: país de brandos costumes, fado, fátima, futebol, as máximas conservadoras e pouco ariscas penetram ainda nos dias de hoje a última malha de tantas bandas que vão por aí aparecendo, tocando e desaparecendo, ano após ano. Mas ainda há quem não obedeça; e, casmurros, vão surgindo, volta e meia, talvez uma vez a cada ano, talvez nem tanto, aqueles que se desviam do padrão escrito a caneta. A recompensa pode ser grande, talvez a maior de todas; enquanto os não sei quantos portugueses vão sendo substituídos por outros portugueses que ainda melhor imitam os não sei quantos, e assim sucessivamente, num macabro concurso de imitações e adaptações cada vez mais afinadas, esses bichos raros, por vezes, acabam por resistir, sobreviver, ficando encravados na consciência de quem os ouve e evitando assim serem abalados das prateleiras das lojas de disco pelos ventos inevitáveis das mudanças de modas.
Ponto segundo: a dita recompensa nem sempre chega. Às vezes a ordem das coisas acaba por abafar aquilo que é demasiado distinto, difícil de mastigar pela falta de hábito do paladar, complicado de trautear por trazer chavões que nada nos dizem porque nunca antes os ouvimos, impossível de explicar ao amigo que pergunta o que é. Lançam-se os álbuns para dentro do precipício que é o público, o público que já tem a sua banda de estimação escolhida, o seu álbum preferido em rotação, o seu gosto talhado à sua medida. E o mais comum é estes discos caírem no vazio, enfim, foi um bom esforço, sim senhor, mas mais vale olhar em redor e aprender como é que se faz daqueles discos que vendem milhares, que enchem plateias, que dão entrevistas, festivais, casa, carro e reforma aos quarenta.
Quando Conan Osiris lançou discretamente, no penúltimo dia do ano passado, o seu segundo álbum de originais, Adoro Bolos (que se sucede a Música, Normal do ano anterior), seria difícil de imaginar que, volvidos menos de dois meses, estaria a pisar o palco do 5 Para a Meia-Noite, no primeiro canal dos televisores de todos os portugueses, para cantar “Borrego”, tema que abre o álbum. De boné cor-de-rosa e argolas penduradas nos ouvidos, acompanhado em palco apenas por um único dançarino, entoou o tema na sua voz e timbre tão característico, por vezes reminiscente dos mesmos maneirismos vocais de um outro desobediente artista do século passado, António Variações. O público riu, assobiou, bateu palmas furiosamente. Filomena Cautela rasgou um grande sorriso, agradeceu, anunciou o seu nome e o nome do seu disco. Quem poderia prever tal coisa?
Talvez o sucesso incrivelmente veloz e imprevisível de Conan seja um testemunho do encanto peculiar de Adoro Bolos; não foi um álbum talhado num protesto anónimo contra a estagnação criativa à qual assistimos por vezes no panorama da música alternativa nacional – é um álbum simplesmente diferente porque tinha de o assim ser, porque Conan é uma pessoa, um compositor e uma alma completamente distinta que foi agora de repente (e já com atraso) cair nos nossos colos desprotegidos. É um mar de perfeitas contradições. Conan casa géneros que nunca se deveriam cruzar, mas que aqui, quase por milagre, conjugam-se com a maior das facilidades: fado, funaná, dancehall, bollywood, tarraxo, dubstep, entre outros. A sonoridade que resulta de todos estes casamentos improváveis é de uma estranheza que inquieta, que ao mesmo tempo seduz e atrai. Parece-nos surgir de um cálculo quase matemático de precisão artificial; simultaneamente, flui com uma naturalidade que nos faz acreditar que foi quase criada sem querer. O circo sonoro de Conan Osiris é sofisticado e kitsch; mas também chunga e despretensioso. E perdendo-nos singularmente na sua sonoridade instrumental, quase podíamos chegar a ignorar a componente lírica, não fosse ela também tão curiosa nas suas múltiplas contradições. A sua escrita é também possuidora de resmas de características singulares. Alguns momentos líricos em particular evocam um tipo de humor único e característico, caindo no aparente nonsense de letras como “Chama o melhor canalizador da city / Pede sanita infinita / Que o teu cu não tem limite yaya”, que pode ser encontrada no hino body positive “Celulitite”, ou até na frase “eu vou-me amandar do Titanique” de, claro, “Titanique”. Mas é o timbre ondulante de Osiris, ao qual já nos referimos no parágrafo anterior, que lhes carrega de uma seriedade de cara fechada que nos confunde e nos fascina ainda mais quando confrontados com o conteúdo bizarro das suas canções. Adoro Bolos, em toda a sua caricatura e estranheza, acaba por ser, inesperadamente, um auto-retrato surpreendentemente sincero e credível do eterno mistério que é Conan Osiris.
Conan já cá anda desde 2014, mas foi preciso chegar à meta final de 2017 para cair, como quem cai do céu, na consciência pública de quem ouve música e de principalmente quem quer ouvir música nova cantada em português. E, ao que parece, com uns minutos de antena no maior canal da televisão nacional e com uma Filomena Cautela sorridente a anunciar o seu nome para, quiçá, centenas de milhares de espetadores (ou mais), o segundo grupo parece estar a crescer cada vez mais e a organizar um motim silencioso, que consiste em elevar as vozes de aqueles que se atrevem a fazer música que dificulta a comparação com aquele ou com o outro. São tudo bons sinais de mudança. Adoro Bolos talvez não seja apenas um bom disco ou um excelente disco; talvez seja, atrevemo-nos a dizer, um disco importante para este pequeno pedaço de terra à beira do Atlântico que já se fartou de brandos costumes.
Sem comentários:
Enviar um comentário