Com primeiros passos dados, em meados dos anos 70, a bordo da Brigada Vitor Jara, tendo depois colaborado com os Trovante e a Banda do Casaco (era sua, por exemplo, a voz de “Salve Maravilha”), Né Ladeiras representava já uma das certezas maiores do panorama da música popular portuguesa quando, em finais dos anos 80, rompeu um silêncio de alguns anos para regressar a estúdio e gravar um novo disco em nome próprio. Distante dos caminhos de revisitação de ecos mais remotos do século XX que experimentara em “Sonho Azul” (1983), álbum produzido por Pedro Ayres Magalhães, retomando de certa forma os espaços mais exploratórios do anterior “Alhur” (1982), um EP no qual tinham também colaborado elementos dos Heróis do Mar, Né Ladeiras rumava a “Corsária” com imagens e histórias diferentes em mente. Greta Garbo era musa inspiradora. E sob ecos de tempos menos focados num calendário, cruzando memórias com uma música claramente do presente, eis que nasceu ali um dos melhores discos do Portugal dos anos 80.
Uma das figuras centrais de todo este projeto é Luís Cília. Nome absolutamente marcante na história da nova canção portuguesa nos anos 60, um dos primeiros a gravar discos que escreveram a história da canção de protesto e luta contra o regime de então, vincando desde cedo uma relação firme com grandes poetas, e o primeiro a criar uma obra no exílio (em Paris), Luís Cília tinha mantido uma atividade discográfica regular ao longo dos anos 80, mas lançava nesse mesmo 1988 “A Regra do Fogo”, o penúltimo disco até hoje editado em nome próprio (seguir-se-ia apenas “Bailados”, editado pela Strauss em 1995). A partir das ideias (co-assinadas em parte com Alma Om) e voz de Né Ladeiras, e segundo a informação apresentada na capa da edição em CD, gravando no Angel 2 com José Fortes (um esteta do som, importante referência na discografia da Banda do Casaco), Luís Cília ajudou a fazer de Corsária, mais do que o álbum de 1983, um “sonho” transformado em canções. Um “sonho lindo”, diria eu, citando uma letra de Fausto, músico que a própria Né Ladeiras homenagearia anos depois no álbum “Todo Este Céu”. Escute-se, por exemplo, o onírico “Garbo”, um instrumental vocalizado, e reconheça-se que está aqui um álbum em sintonia com trilhos exploratórios que então colhiam elogios internacionais em algumas editoras indie de referência.
Além da produção Luís Cília assina aqui os arranjos numa sucessão de quadros elegantes e delicados que, com ajuda das possibilidades lançadas pelos sintetizadores, servem a criação dos cenários por onde a voz de Né Ladeiras vai criando momentos que criam um alinhamento plasticamente coerente. Entre os nomes chamados à gravação de “Corsária” estão o ator Mário Viegas, que escutamos no tema título e Nuno Rodrigues (que assina ainda a direção de produção), que ouvimos em “Mar”. O álbum surgiu numa edição em vinil com um trabalho gráfico diferente do que depois veríamos na versão em CD, na qual a própria ficha técnica mostrava dados mais concretos sobre as funções da equipa que criou um disco que, na altura, colheu elogios e figurou em listas dos mais importantes lançamentos do ano. O tempo parece ter erodido, de modo injusto, a presença do disco no imaginário coletivo. Mas vale a pena lembrar o entusiasmo com que então foi recebido, sobretudo pela crítica. Presente nas plataformas digitais, mas já tratado como peça a preços de preciosidade de coleção nos formatos de LP e CD, “Corsária” é título a (re)descobrir por quem quiser conhecer ou evocar o que de melhor se fez na música do Portugal dos anos 80.
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