Poucos filmes tiveram o impacte cultural, político e social de “A Laranja Mecânica”, adaptação ao cinema, por Syanley Kubrick, do romance homónimo de 1962 de Anthony Burgess originalmente publicado como “A Clockwork Orange”. Estreado em finais de 1971 o filme lançou debates sobre a representação da violência e desde cedo dividiu opiniões. No Reino Unido seria inclusivamente retirado das salas em 1972, regressando ao mercado apenas em 1999, já depois da morte do realizador. Em Portugal a estreia deu-se a 29 de novembro de 1974.
Num retrato rápido podemos lembrar aqui uma narrativa que, depois de nos colocar perante uma noite de excessos e violência extrema, nos mostra Alex, um adolescente líder de um gangue delinquente, a ser submetido a uma experiência de condicionamento do comportamento que o pretende depois mostrar como um caso de sucesso de uma nova terapia. Supostamente “curado”, portanto. Com ação a decorrer num futuro próximo mas nunca claramente determinado, o filme apresenta sobretudo um olhar crítico (ou mesmo cético) sobre várias figuras de poder e autoridade, “A Laranja Mecânica” surgiu na obra de Kubrick como sucessor de “2001: Odisseia no Espaço” (1968) e no lugar de um projeto abortado que teria levado o realizador a criar um biopic sobre Napoleão. Kubrick, meticuloso como sempre, juntou peças certeiras, começando por encontrar o “seu” Alex ao ver um então muito jovem Malcolm McDowell no brilhante “If” de Lindsay Anderson. Juntou um trabalho de direção artística que, sem perder uma alma “anos 70” nos baralha as coordenadas de tempo. E, entre outros mais elementos determinantes para o sucesso do projeto, convenhamos que acertou na mouche na hora de encontrar a música para a banda sonora.
E a história começa quando a compositora Wendy Carlos soube que Kubrick ia adaptar ao cinema o romance de Anthony Burgess. Pioneira da música electrónica, formada pela Columbia University e com um caso (recente) de sucesso discográfico obtido com “Switched on Bach” (disco no qual recriava peças de Johann Sebastian Bach com um sintetizador Moog, tinha trabalhado recentemente uma abordagem algo semelhante à música de Beethoven. E fez chegar às mãos do realizador não apenas os discos que já tinha editado até então mas também uma fita com a gravação de uma adaptação de parte do quarto andamento da “nona” de Beethoven e ainda “Timesteps”, uma nova composição sua, ainda inédita.
Kubrick, na verdade, já tinha uma primeira visão para a música de “A Laranja Mecânica”: queria usar o álbum “Atom Heart Mother” dos Pink Floyd, acabado de editar. Mas, perante a recusa que havia obtido, deu ouvidos à música de Wendy Carlos que então recebeu. E convenhamos que está na banda sonora uma das marcas de identidade mais vincadas de um filme que não só marcou o seu tempo como deixou fortíssimas marcas na cultura popular, que podemos constatar ao ver os telediscos de “The Universal” dos Blur (que evoca o Korowa Milk Bar) ou de “Love Míssil F1-11” (que regressa a um túnel onde o filme mostra uma das suas sequências mais violentas), sendo também de notar que nomes de bandas como Moloko, Heaven 17 ou Devotchkas tiveram aqui a sua inspiração, nã esquecendo ainda que Bowie, que vira o filme logo após a sua estreia (em finais de 71), encontrou ali pistas significativas para a moldagem de Ziggy Stardust, regressando mais tarde a este imaginário quando, por alturas do seu último álbum, recorreu ao calão do gangue de Alex para parte da letra de “Girl Loves Me”.
Apesar de todas estas ressonâncias, o impacte cultural de “A Laranja Mecânica” teve desde logo na própria banda sonora do filme uma peça marcante. Ao escutar a fita de Wendy Carlos, Kubrick encomendou-lhe mais música, pedindo abordagens, uma vez mais recorrendo às electrónicas, a peças de Rossini, Purcell e Beethoven. E as contribuições foram tão determinantes que, inclusivamente, ao escutar a abordagem proposta por Wendy Carlos para “Music For The Funeral of Queen Mary” o próprio realizador acabou por fazer ajustes à montagem para que o filme aproveitasse ao tutano as potencialidades sugeridas pela música. O disco com a banda sonora do filme junta algumas outras gravações para além das contribuições de Wendy Carlos, entre as quais o clássico “Singing In The Rain”, por Gene Kelley, canção que se escuta em dois momentos fulcrais do filme.
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