A ideia era fazer um disco “mais rítmico e funky”, mais colectivo e menos solitário. O resultado? Uma reinvenção refrescante e o disco mais conseguido da carreira de Afie Jurvanen.

Um músico americano mais próximo do country e folk-rock inspirar-se em géneros como a soul e o gospel, trazendo groove e coros para as suas canções, não é propriamente novidade. Afinal, o que fez por exemplo Dylan se não isso, em Slow Train Coming? Se formos aos singers-songwriters contemporâneos (de Kurt Vile a guitarristas como William Tyler e Ryley Walker) e à sua relação com o blues e o jazz (caso  de Walker), que muito inspiraram também a folk britânica (evoque-se  John Martyn ou Michael Chapman), a conversar prolongar-se-ia.

Não deixa de ser curioso, contudo, que tal como Matthew E. White (“Everybody sees that R&B is free (…) Everybody gets that gospel licks are gifts (…) Everybody knows that rock and roll is cold”, lembram-se?) – que até decidiu montar um estúdio com uma banda residente à la Motown (Spacebomb Studios) -, também Afie Jurvanen, o músico que assina como Bahamas, tenha-se inspirado na herança da música americana predominantemente negra na sua reinvenção como artista. As pistas tinham sido deixadas antes mesmo de Earthtones, o novo disco, chegar às lojas. “Adoro R&B, adoro hip-hop (…) Tenho andado a ouvir muita música moderna, do Anderson Paak, do Kendrick Lamar, do Kanye West”, apontou em entrevista o músico canadiano, já com três discos anteriores editados e alguma experiência como produtor.

Inspirado também pela sua nova residência, Los Angeles, Afie queria fazer um disco “rítmico e funky”. Decidiu convocar a excelente banda que apoia o cantor de R&B D’Angelo (os Vanguards, onde estão por exemplo o prestigiado baterista James Gadson e o grande baixista Pino Palladino) e foi para estúdio gravar um álbum musicalmente mais instintivo: se as canções não lhe pareciam bem, contou em outra entrevista, seguia em frente e começava rapidamente a explorar outras ideias, processo bem diferente do anterior, onde trabalhava os primeiros rascunhos até à exaustão, até se tornarem eficazes.

Já chamado de o seu disco “mais catchy”, Earthtones é seguramente o disco com canções mais relaxadas e com mais groove que Afie já compôs (benditos baixos). Os coros resultam muito bem, a sonoridade (com o espaço adequado deixado à exposição da cumplicidade e virtuosismo da banda) é coerente do início ao fim, o álbum começa e acaba bem e não parece pouco editado (nenhuma das 11 canções soa especialmente dispensável) e tem um tema fabuloso (“Way With Words”) que dificilmente não figurará entre os mais interessantes de 2018.

“We all start out alone and seek a mistery all our own / so let the heart beat out its ancient tone”, canta, logo no tema inaugural (“Alone”) onde dá o mote para uma escrita inteligente e madura sobre o amor, depressões, “white privilege” e o seu percurso e relação com a indústria (“I got lonelier up there in that one man band”, canta numa música; “We’re the opening act and yes the place is packed / And so I’m glad / cause it wasn’t long ago I wasn’t offered a show”, refere noutra), aqui e ali piscando o olho à linguagem contemporânea (“Don’t keep me waiting on some SMS”).

Inspirado no passado mas profundamente ancorado no presente, Earthtones é um belo exemplo da melhor reinvenção e renovação. Já em 2017 tínhamos tido a mesma impressão com FLOTUS, dos Lambchop, disco no qual Kurt Wagner (líder da banda) decidiu aproveitar os benefícios da tecnologia (em especial do vocoder) e da produção mais groovy e experimental do presente (do R&B mais alternativo) em seu proveito. Podia ter corrido mal mas Earthtones representa um passo em frente. É, também, um indício auspicioso de um belo ano musical, para o qual Dr. Lonnie Smith (All In My Mind), Ty Segall (Freedom’s Goblin) e o nosso Sérgio Godinho (Nação Valente) também já contribuíram.