Podem canções nascidas noutros tempos e contextos serem transformadas em peças capazes de nos contar uma outra história? Podem, claro. E basta lembrar o que aconteceu com um a mão-cheia de clássicos dos Abba que, de vários discos originalmente lançados nos anos 70 e inícios de 80 rumaram, ali mesmo na viragem do milénio, a uma narrativa romanesca com cenário algures entre ilhas gregas, dando primeiros passos em palco e acabando depois nos ecrãs de cinema. Foi semelhante o princípio que definiu o corpo de canções que Todd Phillips e Scott Silver levaram a “Joker: Folie A Deux”, sequela do filme de 2019 que havia encontrado um ponto de vista com alicerces mais realistas para a história de vida de uma personagem nascida no universo da banda desenhada. Tendo encontrado a meio do processo de escrita a voz que iria contracenar com Joaquin Phoenix, fechando assim a seleção de canções num diálogo entre a narrativa e a entrada em cena de um vulto maior do panorama pop atual, os argumentistas acharam numa mão-cheia de memórias do chamado great american songbook, umas nascidas no teatro, outras com vidas no cinema, as peças para concluir a visão que nos queriam propor. No plateau as canções ganharam corpo, umas interpretadas pelo próprio Joaquin Phoenix, outras por Lady Gaga. Mas as novas vidas deste conjunto de canções na verdade não se esgotou aqui. E, para surpresa de tudo e todos, a dias da estreia do filme, Lady Gaga apresentou “Harlequin”, um álbum que podemos descrever como disco-companheiro da banda sonora.
É claro que não é inédita esta ideia de juntar à criação de um filme um álbum de canções inspiradas por si. Madonna fê-lo com “I’m Breathless”, com “Dick Tracy” (onde participou como atriz) como fonte de inspiração. E Prince, de quem o “Batman” de Tim Burton usou no filme apenas as canções “Partyman” (na célebre cena do museu) ou “Trust” (na sequência da parada), acabou por criar em 1989 todo um álbum inspirado pelo herói da capa negra, usando até aqui e ali elementos de sonoplastia claramente ligados ao filme. “Harlequin” nasce de um pensamento semelhante, distinguindo-se dos álbuns de Madonna e Prince por viver sobretudo de material musical de facto usado no filme, embora aqui observado por pontos de vista mais desafiantes. Lady Gaga junta ao mood jazzy e teatral original que emana da memória de muitas canções uma vontade em vincar o cunho de uma personalidade interpretava de alguém que, mesmo tendo já assinado dois álbuns mais próximos desses universos (ambos ao lado de Tony Bennett, um em estúdio, outro ao vivo), tem contudo na pop (e numa ocasional costela rock) o ADN primordial da sua linguagem. Se por um lado em “Good Morning” ou “Get Happy” segue as sugestões clássicas de arranjos de outros tempos, já em “When The Saints” ou, sobretudo, no fulgurante “The Joker” (como é que não foi este o single???), reconhecemos essa capacidade transformadora. O alinhamento vive num ziguezague entre caminhos possíveis para reencontrar clássicos de mestres como Burt Bacharah, Andrien Newley ou Harold Arlen, juntando ainda novas canções (aqui a destacar também uma presença autoral) entre as quais o magnífico “Folie a Deux” que poderá trazer boas surpresas na próxima temporada de premiações. Pelo caminho encontraremos um novo álbum pop… Mas isso são contas para fazer em fevereiro de 2025.
“Harlequin”, de Lady Gaga, está disponível em LP, CD e nas plataformas digitais, num lançamento da Interscope/Universal
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