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A dor e a perda são as pedras de toque de Rest, mas não o suficiente para condenar o álbum ao eventual desconforto da tristeza e da melancolia que essas sensações geralmente implicam.
Não é de agora, o ditado: filho de peixe sabe nadar. E se assim é o que há muito se apregoa, convém perceber que para Charlotte Gainsbourg a ideia continua válida após mais um disco de estúdio, isto se não tivermos muito em conta o precoce Lemon Incest, gravado com apenas treze anos. Em todo o caso, não devemos passar ao lado de duas ou três outras verdades que poderão enquadrar melhor o que nestas linhas iniciais se foi já escrevendo. É que no presente álbum há condicionantes que ora elevam, ora atenuam o desempenho artístico da menina de Serge, o Gainsbourg pai, que de tão grande estrela que foi, ensombrou a sua e também parte das gerações futuras, arrastando nessa meia obscuridade muito boa gente, incluindo a sua própria filha, que em Rest vai revelando brilho e opacidade em iguais medidas.
Também não é de agora a predileção pelo sussurro, pela quase falência de voz que desde cedo se colou a um certo estilo da chanson française. Charlotte Gainsbourg alinha nesse costume, muito mais por culpa do fio de voz que possui e menos pelo apuro desse uso sedutor de usar a voz e o canto. No entanto, e para além dessa particularidade, Charlotte sempre soube onde procurar ajuda para tornar maior a sua veia artística no mundo da música. Beck Hansen, Jarvis Cocker, Neil Hannon ou Air são nomes que impressionam, e que desde 5:55 foram andando de braço dado com a cantora. Em Rest, e mesmo apesar de se manter bem acompanhada (Paul McCartney, Guy-Manuel de Homem-Christo, Owen Pallett e Connan Mockasin deram uma mãozinha), Charlotte Gainsbourg apostou mais em si e nas suas ideias para a composição dos onze temas do disco. Não se saiu nada mal, convenhamos, embora este seu recentíssimo trabalho pouco ou nada acrescenta ao que já nos foi dando ao longo dos anos. Essa constância não é, em si mesma, uma circunstância negativa, não fosse por vezes um excessivo refinamento na produção, um desmedido polimento gourmet no som final do álbum. O estilo pelo estilo nem sempre é amigo da verdade artística.
Mas voltemos ao que há de melhor num disco onde a ideia de perda é uma constante, facto que resultou do falecimento, em 2013, da sua meia irmã Kate Barry, exatamente quando Charlotte começava a preparar o sucessor de IRM. O passar dos anos não se fez notar no tom final de Rest, imerso em dor, em luto e em semelhantes declínios da alma. Uma das suas maiores virtudes é o pendor cinematográfico das melodias e ritmos de alguns dos temas do disco. “Ring-a-Ring O’ Roses”, “Rest” e “I’m a Lie” são bons exemplos disso, e também boas canções. Mas há outras, essas mais próximas da eletrónica, como “Deadly Valentine”, “Sylvia Says” e “Les Oxalis”, embora esta última possa bem ser o testemunho perfeito da presença sempre insinuante e permanente do seu pai. O nu-disco e os sussurros gainsbourgianos podem viver maritalmente e na mais perfeita comunhão. A destacar há ainda a dançante “Songbird In a Cage”, que mesmo não sendo um primor, não desmerece o seu criador, Paul McCartney.
Rest é mais um elegante e honesto disco de Charlotte Gainsbourg. A atriz-cantora não fica nada mal, mais uma vez, na fotografia. Volta a mostrar algum cinzentismo nas palavras (o que é perfeitamente compreensível) assim como no tom que vai pairando ao longo de todo o álbum. Rest é um momento de intimidade que Charlotte Gainsbourg resolveu partilhar com o mundo. Um disco catártico, um disco sofrido e a prova de que é possível encontrar beleza na ruína e no desvanecimento humanos.
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