sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

Lene Lovich “Toy Box – The Stiff Years 1978-1983”

 Uma das mais interessantes consequências da “revolução” punk foi o alargamento dos horizontes das possibilidades que muita criação pop rock ensaiou perante o grito de liberdade que mudara o mapa dos acontecimentos depois das revelações finalmente reveladas nos dois lados do Atlântico entre 1975 e 76. O termo pós-punk na verdade define mais um espaço temporal de acontecimentos dentro de eventuais novas fronteiras estéticas. Entre nós, na altura, usava-se para agrupar alguns desses acontecimentos a expressão “new wave”. E ali cabiam Elvis Costello, Ian Dury, os Madness, os Shirts ou os Talking Heads, uma vez mais definindo-se aqui uma linha de acontecimentos de geografia sonora bem mais alargada do que tantas outras expressões de “género” (musical, entenda-se) por vezes refletem. Lene Lovich era uma figura com algum impacte nesse panorama que viveu os seus dias entre finais dos anos 70 e inícios dos anos 80, contemporâneo portanto da eclosão do movimento new romantic (que nos EUA muitas vezes são arrumados na prateleira new wave) ou a primeira geração da emergente pop electrónica. Pela sua música havia marcas de época evidentes na forma de encontrar nas guitarras a força na condução de canções de alma pop. Mas a presença de teclados, de metais, de um sentido cénico invulgar e uma vocalização claramente ímpar, mostravam em si marcas de identidade que demarcaram imediatamente um lugar para si logo nos primeiros singles. E em 1979, o impacte significativo de “Lucky Number” (que na verdade começara a ser criado como um lado B para uma versão de “I Think We’re Alone Now”, em 1978), que esmaga em popularidade toda a restante discografia de Lene Lovich, faz com que por vezes haja quem a recorde como figura de um só êxito. Mas basta ouvir os discos que editou (sobretudo os primeiros) para reconhecer que, como em tantos outros casos, o sucesso nas vendas de discos não mede necessariamente a real expressão de uma obra.

Nascida em 1949 em Detroit, nos EUA (com pai sérvio, daí o apelido do seu nome real: Lili-Marlene Parmilovich), mas criada no Reino Unido desde os 13 anos, começou desde logo por apontar o seu futuro a uma carreira nas artes. E foi para impedir que os cabelos se misturassem com a argila em aulas de cerâmica e escultura que criou aquela forma de os prender que acabaria por ser imagem de marca que ainda de hoje não dispensa. A construção de uma personalidade invulgar deve certamente muito ao percurso, que a fez trabalhar como dançarina, escrever letras e atuar junto don francês Cerrone  (é sua a letra do clássico “Supernature”) ou gravar gritos em filmes de terror. A música surge cedo, com primeiras experiências em bandas, chegando mesmo a gravar um álbum com os Diversions (onde o safoxone tinha já um certo protagonismo).

Lene Lovich tinha já editado a solo um EP de Natal em 1976 quando um DJ apresentou uma gravação sua à Stiff Records (casa que teria um papel central nas movimentações “new wave” pelo Reino Unido em finais dos setentas e inícios dos oitentas). A ideia de gravar uma versão de “I Think You’re Alone Now” como single cede depois perante o aparecimento de “Lucky Number”, reeditada como lado A em 1979 e que abre um capítulo numa discografia que conheceu primeira experiência maior fôlego no álbum “Stateless” (1978) que traduz já as marcas de identidade da cantora.

Em 1980 chegou um segundo e ainda mais sólido passo (e um melhor corpo de canções) no sucessor “Flex”. O mundo dos sonhos, temas como a reincarnação ou inspiração colhida em livros de Charles Darwin ou Pierre Boulle materializam-se aí num disco de cenografia apurada e no qual há espaço para a experimentação de soluções invulgares, como as imitações de sons de pássaros que abrem “Bird Song”, nascidas de uma gravação inesperada que ela mesmo fez a meio de uma noite, tentando captar o que acabara de imaginar.

O EP “New Toy” (1981), no qual colaborou Thomas Dolby, que por algum tempo integrou a banda de Lene Lovich, antecedeu o terceiro álbum “No Man’s Land” (1982). Mais luminoso e menos intenso este terceiro disco passou longe das atenções e assinalou o ponto final no relacionamento com a Stiff Records. 

Este percurso entre 1978 e 1983 é agora recuperado em “Toy Box”, uma caixa de 4CD que junta os três álbuns editados neste período, acrescentando a versão remisturada de “Stateless” que na verdade corresponde à que foi lançada em muitos territórios internacionais. O booklet que acompanha estes 4CD assegura o “era uma vez” da história, contando com palavras da própria Lene Lovich, numa narrativa que nos faz entender o porquê da sonoridade mais crua e algo inacabada da versão original do álbum de estreia (criado em contra-relógio para integrar um lançamento simultâneo de discos pela editora) e o processo de refinamento que a remistura, originalmente apontada para o mercado americano, acabaria por trazer, com acoplamento diferente, às mesmas canções. 

Esta caixa acrescenta aos álbuns a totalidade de faixas lançadas em singles (lados a, b e máxis) neste mesmo período, o que envolve algumas gravações captadas ao vivo. Estão aqui ainda faixas reveladas em compilações temáticas da Stiff Records, entre as quais o hino “Be Stiff” gravador durante a célebre digressão conjunta de artistas do seu catálogo em 1979. 

Entre um corpo de 81 faixas, algumas pela primeira vez disponíveis em CD, faz-se a história da etapa mais significativa da obra de Lene Lovich. De fora ficam as poucas gravações anteriores a 78, assim como a mais esporádica atividade discográfica posterior que inclui um single pelo projeto Dolby’s Cube (de Thomas Dolby) e um outro em colaboração com Nina Hagen, criado em campanha pelos direitos dos animais, assim como os álbuns Wonderland (1989), que retoma as sonoridades clássicas da sua obra, tal como o faria em 2005 o seguinte Shadows and Dust, nenhum deles porém capaz de cativar atenções maiores (valendo contudo a pena sublinhar que a canção-tema do disco de 89 merece um lugar entre os temas de referência de Lene Lovich).

Com o teatro, a vida familiar e outros afazeres a dominar atenções em outras etapas, a música só voltou ao centro de gravidade da obra de Lene Lovich quando, em 2012, fundou a Lene Lovich Band, que a devolveu à estrada e com a qual se apresentou já em Portugal. A nova banda ainda não editou material novo.

“Toy Box – The Stiff Years 1978-1983”, de Lene Lovich, está disponível numa caixa com 4CD, numa edição da Cherry Red.




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