Há momentos em que finalmente os caminhos se cruzam. E, para mim, não podia ter havido melhor momento para um primeiro encontro com a música de Malu Maria. O álbum chama-se “Nave Pássaro” e é uma das propostas mais cativantes e diferentes que nos chegaram este ano do Brasil. Com um percurso académico sobretudo feito no teatro (é formada em performance, teatro e dança), nos universos da dança (tem também um curso de danças brasileiras e percussão) e em musicoterapia, com trabalho ativo no ensino da música e um trilho que a fez passar antes por projetos como Manallu ou Radinho de Pilha, Malu Maria iniciou um percurso discográfico há uns seis anos, tendo desde então editado os álbuns “Diamantes na Pista” (2018) e “A Mentira dos Homens” (2020), discos aos quais se junta uma mão-cheia de singles. “Nave Pássaro”, editado este ano, é o seu terceiro álbum e representa, como o próprio título possa sugerir, uma partida, voando, rumo a novos desafios.
Fruto talvez de convivências em torno de um espaço da vida cultural paulista, o Teatro Quarto Mundo (mantido pela própria Malu Maria em Vila Romana), o álbum nasce do cruzamento da escrita e demandas da própria protagonista numa confluência de gostos, debates e colaborações com outros que por ali passam regularmente. Nome em destaque neste jogo de encontros é o do produtor Dustan Galas, que em 2023 trabalhara em “Boate Invisível”, o mais recente álbum de Tatá Aeroplano (no qual colaborou Malu Maria), com quem a compositora e cantora havia já partilhado o single “O Seu Amor”, em 2022). Porém, os caminhos de liberdade e desafio que Malu segue nesta sua “Nave Pássaro” são distintos dessas colaborações, valorizando sobretudo a presença de electrónicas que evocam os primeiros passos da chegada dos sintetizadores e sequencadores à música popular. Convém notar aqui que as eletrónicas já habitavam antes as suas canções, embora sem o protagonismo que este novo álbum lhes dà (mesmo assim vale a pena notar uma boa sugestão de possibilidades, em “Ela Terra”, do segundo álbum, ou no “Espelho Infinito”, single com YMA em 2022).
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Entre o cuidado preciso do geometrismo na arrumação dos elementos em “Abrem-se os Portais” ou “Nave” (onde se sublinha a ideia de uma “nova perceção”) ao prazer pop com alma disco do empolgante “A Língua Trava”, o álbum revela, logo nestas notas de abertura, uma vontade em aliar um melodismo acessível e uma nova poética a uma música que sente o gosto em encenar cada nova canção, como num palco de teatro. As canções convocam espaço, camadas de acontecimentos, referências, que ora podem piscar o olho a uma escola electro, mas com alma mais desafiante nas percussão, em “Luz Lilás”, sugerir classicismo quase sinfonia em “No Olho do Dragão” ou convocar uma dimensão mais exploratória em “Pássaro” (peça longa que revela nas notas iniciais uma linguagem experimental e evolui depois para um festim electro funk) ou evocar o prazer da pop eletrónica dos oitentas no sedutor e tranquilo “Tomei Teu Vinho”. A fechar, “Nosso Segredo” parece ser uma súmula de tudo o que acabou de acontecer. Se, no presente, é frequente aquele discurso que fala de um tempo em que a canção vive por si, “Nave Pássaro” é um belo exemplo da dimensão conceptual que o álbum, afinal, ainda pode sugerir na hora de apresentar uma nova coleção de canções.
“Nave Pássaro”, de Malu Maria, está disponível nas plataformas de streaming numa edição de autor (com distribuição Tratore)
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