quarta-feira, 12 de março de 2025

Sufjan Stevens “Javelin”

 O yin e o yang. O côncavo e o convexo. O mundo à nossa volta. A vida… Ideias e palavras que, somadas a uma mão cheia de magníficas canções, geram momentos tão pessoais como partilháveis… Lembro-me de levantar esta reflexão na manhã seguinte ao inesquecível concerto que Sufjan Stevens trouxe, há uma dúzia de anos, ao Coliseu dos Recreios (Lisboa). Esta coisa dos contrastes faz de facto parte da caracterização de uma obra que nunca que quis fechar numa rota única, num caminho de um só sentido. Pelo contrário, de projetos experimentais a incursões pelo cinema (e respetivas músicas, como escutámos no seu documentário “The BQE”, de 2009, ou nas canções que deu a “Call Me By Your Name” de Luca Guadagnino), de aventuras coletivas (como a que o juntou a Nico Muhly, Bryce Dessner e James McAlistair em “Planetarium” (2017) ou a Timo Andres em “The Decalogue” (2019) ou a Lowell Brams em “Aporia” (2020) aos seus deliciosos EP de Natal, os mundos pelos quais a música de Sufjan Stevens são tão vastos que, por vezes, pode ser difícil mantê-los sob os radares das nossas atenções. 

Recordo, com nitidez, o impacte da chegada de “Illinois”, o disco de 2005 que, somando então um novo conjunto de olhares ao anterior “Michigan” (2003), levantou, da parte do próprio músico, uma ideia de grande escala que notava que ambos os discos eram parte de um ciclo que retrataria todos os estados dos EUA, cada qual através de um conjunto de canções… Felizmente a coisa ficou por ali e o retrato maior foi deixado incompleto, dando a Sufjan Stevens a liberdade para tanto para desafiar a placidez das suas raízes folk no sofisticado e complexo “The Age do Adz” (2010) como para reencontrar a simplicidade direta da escrita para voz e instrumentação minimalista em “Carrie and Lowell” (2015), que até aqui representara o mais pessoal e emotivo dos seus discos… 

Todos estes caminhos desaguam em “Javelin”, disco que assinala, depois de arcos desenhados rumo a diversos rumos dispersos, um reencontro de Sufjan Stevens com alma primordial do cantautor (que nunca deixou de ser), num conjunto de canções que ele mesmo revelou já serem um ciclo dedicado ao seu companheiro entretanto desaparecido no passado mês de abril. Intenso e delicado, tal como era “Carrie and Lowell” (outro disco no qual as fronteiras próximas da intimidade se esbateram perante canções profundamente pessoais), “Javelin” reflete sobre a dor e a perda, num ciclo que não se esgota contudo na relativa simplicidade de arranjos do álbum que dedicara à mãe e ao padrasto. Mais próximo de um cruzamento entre a dimensão emocional e a intimidade de “Carrie and Lowell”, mas refletindo também o gosto pela composição de cenografias que o conduziu a “The Age do Adz”, “Javelin” representa a expressão de mais um episódio maior na obra de Sufjan Stevens, no qual junta à sua escrita uma versão de “There’s a World” de Neil Young. Se por um lado dá razão àquela visão (que não é lei) sobre a forma como a dor pode motivar a criação, por outro pode representar uma vontade em segurar uma âncora segura depois de uma tempestade emocional. Certo é que “Javelin” é mesmo um dos melhores dos seus discos. 

“Javelin”, de Sufjan Stevens, está disponível em LP, CD e nas plataformas de streaming numa edição da Asthmatic Kitty Records.



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