Está já tão estafado o discurso sobre a erosão da relevância música elétrica nos mapas da música do nosso tempo que quase podemos ser tentados a nem sequer espreitar o que possa ir entrando em cena sob o rótulo rock… Não é nunca boa ideia acreditar na generalização das tendências. Mas se por um lado é evidente uma certa crise criativa (com consequente expressão nos retratos dos acontecimentos mais marcantes a cada ano que passa), por outro não deixa de ser desconcertante – perante os discursos mais céticos – ver como, sobretudo entre os cartazes dos festivais, o rock ainda surge como um fator de mobilização. A comparação pode ser ousada, mas ninguém duvida que um programa de sala de concertos de música clássica tem sempre resposta garantida se no programa há obras de um Bach, um Mozart, um Vivaldi (sim, e por populares que sejam, os Foo Fighters, os Pearl Jam ou os Queens of The Stone Age não são nem serão nunca figuras dessa dimensão histórica). Mesmo reconhecidas as diferenças, a verdade é que este poder de comunicação perante o que é “clássico” (classic rock, portanto) dá afinal à música elétrica uma puslação que contraria o estado “moribundo” de algum discurso crítico recente. Vale a pena notar, também, que são dos Pink Floyd, Queen, Red Hot Chilli Peppers ou de outros heróis do panteão rock, os títulos campeões das vendas no vinil. Não matemos o rock, portanto.

Mas outra coisa, de facto, é a grande questão: será hoje o rock uma linguagem capaz de ser desafiante e criativamente relevante no presente como o foi na segunda metade do século XX? Ou seja, ser uma força atuante para além da carga de nostalgia que sustenta os alicerces do seu estatuto? Olhando para as listas de fim de ano de publicações que não se fechem apenas nos nichos dos mais variados espaços do rock, e não apenas as de 2023, mas também as dos anos recentes, realmente notamos que, face a outros tempos, há hoje uma relativa escassez de títulos vindos deste campeonato. Mas nunca uma ausência. Nunca um silêncio. E não se conta com rigor a história de 2023 sem passar pelo melhor disco dos Rolling Stones em 40 anos nem pelo álbum que assinala o regresso (em forma) dos Blur. Veteranos, ambos, verdade… Mas se o primeiro não estará a competir pelo troféu das novas ideias (ninguém as espera ali, e nada contra) e o segundo traduz a solidez da maturação de ideias e respira o tempo que passou, teremos então de procurar noutros lugares onde anda a música elétrica de alma mais ousada e apontada à exploração de novas ideias. Existirá? Sim, existe. E bem mais desafiantes nas formas do que os muito elogiados Idles ou Fontaines DC, muito presentes entre listas de melhores do ano (nos últimos tempos) e nos cartazes de festivais, os The Kills são há já muito, sobretudo depois do fim dos White Stripes e, mais recentemente, o ponto final no percurso dos Low, uma das mais recomendáveis forças na linha da frente da criação de canções para alta voltagem. E, em 2023, umas fasquias acima dos seus álbuns recentes, o novo “God Games” transporta-os de volta ao patamar mais visionário que haviam definido entre discos como “Keep On Your Mean Side” (2003), “No Wow” (2005) ou “Midnight Boom” (2008) títulos iniciais na sua obra que ajudaram a dar novos sentidos à expressão “minimalismo”.
Nascido após sete anos de silêncio, num processo de regresso que teve curiosamente primeiros passos na estrada ao lado de Jack White, “God Games” começou por ser imaginado como um desafio lançado a si mesmos pelos próprios Jamie Hince e Alisson Mosshart, procurando possíveis caminhos eventualmente distantes do que já haviam percorrido, chamando a bordo um produtor habituado a lidar com a limpidez das vozes e formas da música pop. Ao cabo de algum tempo de trabalho notaram que, mesmo perante novas variáveis, a identidade dos The Kills manteve-se intacta numa nova coleção que não perdia as rugosidades das formas, a angulosidade das linhas, o sabor das forças de atrito que o ruído pode lançar nos espaços, desenhando canções nas quais a clareza do tratamento da voz se revela depois determinante (e confirma a boa escolha de produtor). O tom áspero de “New York”, que abre o alinhamento, contrasta com os mundos que depois vamos encontrando, procurando mais frequentemente expressões de elegância, cenografias capazes de criar ambientes cinematográficos, por vezes mesmo episódios com aquela dimensão épica dos hinos, como se escuta nos belíssimos “My Girls” ou “LA Hex”, em ambos os casos surgindo as cores adicionais de um coro. Minimalismo ainda é palavra que faz aqui sentindo, se bem que não há a bordo regras à la Dogma 95 que vetem outras contribuições. Mesmo assim, ainda é do pouco que entre os The Kills se faz muito. No fim, se alguém pedir por um bom disco rock de 2023, a resposta pode claramente estar aqui.
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