Lembrar No Need to Argue servirá sempre para celebrar o melhor momento da vida musical dos The Cranberries, sobretudo agora que a sua verdadeira alma já não se encontra entre nós.
A morte, uma vez mais, foi indecente. Continua, nos últimos tempos, a ser pronta, rápida e fatal nos disparos que vai tendo à sua disposição, vitimando muitas das referências das nossas vidas melómanas. De forma aparentemente indiferenciada, lá vai ceifando, feliz da vida, os pequenos e os grandes deuses que a música sempre soube criar. E nós, sujeitos aos imprevistos da velhaca de sempre, vamos mantendo a cabeça firme, embora muitas vezes com os olhos húmidos.
Vem tudo isto a propósito da morte recente de Dolores O’Riordan e do disco que resolvemos aqui recordar, o segundo dos sete discos que fez com os The Cranberries, banda que emergiu determinada a marcar o seu território musical em 1993 com Everybody Is doing It, So Why Can’t We?, se impusesse como referência para muitos amantes do rock de travo mais alternativo, embora nunca escondendo a agradável vertente pop da maioria das suas composições. O disco em questão, lançado no ano seguinte ao seu primeiro longa duração, revelava maior segurança artística e trazia consigo um verdadeiro hit mundial, o irreverente “Zombie”, canção que ecoou vezes sem conta em todo e qualquer canto do universo humano. Referimo-nos, como se percebe, a No Need to Argue, que para além de “Zombie” trazia ainda outros belíssimos temas que sobreviveram (e bem) à passagem do tempo. “Ode To My Family” (aquele “Doo doo doo doo doo doo doo doo” inicial é inesquecível) é, talvez, o melhor dos exemplos, uma vez que nunca sofreu o desgaste mediático de “In your head, in your head / Zombie, zombie, zombie”. Outro tema forte e bem conseguido, mais roqueiro e irrequieto que o a canção inicial, é “I Can’t Be With You”. Numa atmosfera mais calma, mais serena, lembrando, embora apenas a espaços, a voz e o jeito composicional de Suzanne Vega, a balada “Twenty One” é também um perfeito exemplo de resistência, momento muito bem conseguido de No Need to Argue. O disco, no entanto, comportava ainda outros recheios apreciáveis, como “Daffodil Lament” (canção que se foi revelando uma das preferidas dos fãs mais hardcore ao longo dos tempos) e “No Need to Argue”, para dar apenas mais dois exemplos significativos. Longe de ser um disco perfeito, foi com este segundo álbum que a projeção internacional da banda The Cranberries se deu definitivamente, uma vez que soube cumprir as expectativas criadas com aquele que foi o bom pontapé de partida do conjunto irlandês, trabalho já bastante promissor e que continha aquela que para muitos será a melhor canção de sempre de Dolores O’Riordan e companhia, a fabulosa “Linger”. Ou, para outros, a igualmente fantástica (e crescente no entusiasmo que vai transmitindo) “Dreams”.
Depois dos dois primeiros trabalhos, nunca mais a banda igualou a mestria desses tempos iniciais, embora em To The Faithful Departed (1996) e Bury the Hatchet (1999), os discos que se lhes seguiram, se encontrem igualmente alguns momentos de sólido interesse musical.
No entanto, e de forma súbita, rasteira e perversa, no passado dia 15, o mundo despertou para mais uma ausência significativa. Perdemos uma voz intensa e suave ao mesmo tempo, uma voz que parecia quebrar-se por momentos (era um estilo, não mais do que isso) para de novo ressurgir para dar corpo e forma aos temas que nos fomos habituando a ouvir há já mais de duas décadas. Os The Cranberries, a partir de agora. não serão mais os mesmos, se é que alguma vez voltarão a ter existência. Por isso, recordar aquele que para nós é o melhor momento discográfico da banda, era algo que se impunha. O Altamont tem memória, mesmo que por vezes ela se faça de momentos tristes.