terça-feira, 31 de janeiro de 2023

ESQUINA PROGRESSIVA

 

Porcupine Tree - Deadwing (2005)



Esse foi o primeiro álbum da banda que ouvi e confesso que de maneira tardia se pegar o tempo que estou sempre de cabeça dentro do universo do rock progressivo. Mas como diz o ditado, antes tarde do que nunca. Foi paixão a primeira ouvida, senti nele uma atmosfera genuinamente brilhante e original mostrando ser um grupo que sabem absorver tudo que de melhor o rock tem a oferecer. Ainda que algumas partes mais pesadas desse disco possam remeter o ouvinte facilmente a bandas como Dream Theater e Tool, eles no final das contas sempre voltam a sua típica orientação sonora durante a música.

“Deadwing” abre o álbum através de alguns breves efeitos espaciais antes que a banda se mova rapidamente em alta velocidade com um riff agressivo de guitarra. Steve Wilson apresenta o ouvinte para praticamente todos os diferentes efeitos vocais que ele usa ao longo do álbum. Isso inclui sussurros, palavras faladas e harmonias limpas. A faixa também possui vários solos muito diferentes de guitarra, o primeiro pelo próprio Wilson e o trabalho de guitarra perto do final da música é do músico convidado Adrian Belew. Há momentos atmosféricos que também a enriquecem, enfim, uma grande abertura pra um grande álbum.

“Shallow” é uma canção incomum de metal, mas direta, que contem um refrão que gosto bastante e alguns bons riffs e quebradas inspiradas em Dream Theater. Essa música talvez não seja muito bem vista por uns fãs mais puristas de progressivo, mas eu particularmente a acho uma canção de excelente construção e execução.

“Lazarus” move o álbum para outra extremidade de espectro musical com uma introdução através de um suave e melancólico piano. De grande simplicidade e linha emocional, com certeza que tocada em uma situação especial é capaz de arrancar lágrimas do ouvinte.

“Halo” é mais um momento bastante acessível do álbum embora tenha m final mais complexo. Uma canção bem interpretada, musicalmente é cheia de atmosferas, uma linha de baixo matadora, um coro cativante, passagens de guitarras interessante. Liricamente é interessante, pois usa Deus como tema, o colocando como “responsável de tudo no mundo” quando diz, "Deus é liberdade, Deus é verdade, Deus é poder e Deus é prova, Deus é moda, Deus é fama, Deus dá sentido, Deus dá ... dor!"

"Arriving Somewhere But Not Here” é a minha música preferida do disco e a primeira música que ouvi da banda. Costumo dizer que ela é o coração do álbum, um clássico exemplo de tudo o que a banda tem a oferecer em apenas uma faixa. Space rock progressivo com muitas atmosferas , muitas harmonias vocais e efeitos interessantes. A introdução com as guitarras acústicas dão início já dando a ideia de promessa de um épico magistral. As melodias oníricas e os arranjos meditativos permitem que o ouvinte viagem pra fora do seu corpo. A banda então assume o controle por completo em uma sonoridade edificante e de pura magia sonora. A faixa também apresenta várias partes pesadas no meio onde novamente podemos notar influências em Dream Theater em uma combinação de riffs e quebras de tempo além de percebermos reminiscências novamente na Tool também.  A parte principal da música então retorna até que ela vai desaparecendo. Sem dúvida alguma a principal faixa do disco e um dos hinos da banda.

Depois de um épico, nada melhor que uma faixa que permita que o ouvinte ganhe uma folga da complexidade. “Mellotron Stratch” é uma faixa suave, começa com um bom riff, uma percussão eletrônica se junta, o desempenho de Steven Wilson está ótimo, soando de forma bastante devotada até que a faixa adquira de fato algum ritmo. Tem um coro muito bonito e uma parte mais enérgica apoiada por um leve solo de guitarra. Ainda que se eu fosse escolher uma faixa como a minha menos favorita ela seria a minha escolha, não quer dizer que não possui uma qualidade de primeira também.

Com “Open Car” é outra canção acessível, confesso que não houve amor a primeira ouvida, mas depois essa faixa cresceu bastante em mim. Começa com um tipo de riff silencioso que certeza bandas como Tool e Opeth também usariam. Depois o riff fica mais pesado quando a bateria entra. O refrão é mais leve do que se pode esperar da música, mas feito em um excelente trabalho vocal de Steven Wilson. Confesso que nunca entendi muito bem sobre o que essa música está falando, mas creio que seja sobre as coisas que desmoronam em sua vida. Belíssimo momento rock and roll do álbum.

“Start Of Something Beautiful” traz um humor que eu gosto bastante. É suave, brilhante e feliz em um único pacote. A melhor parte da música sem dúvida alguma é a sua brilhante passagem instrumental que se ajusta próximo dos cinco minutos, uma melodia assombrosa de piano que remete a belíssimos momentos eternizados no progressivo 70’s, pelo Genesis, por exemplo. Uma faixa bastante forte e sinfônica em uma entrega musical emocionante.

“Glass Arm Shattering” é a última música do álbum. Uma forma perfeita de encerramento por toda a viagem musical abordada no disco. Começa com algumas guitarras estáticas e então alguns sintetizadores espaciais também entram antes que Steve Wilson comece a cantar com vocais bem relaxantes de se ouvir. A faixa progride bastante bem com um ótimo piano. Depois de uma seção mais pesada a música termina de maneira mais ou menos como começou.

Deadwing é um daqueles registros de efeito duradouro e que parece que melhorar a cada audição. Um dos melhores discos de uma das melhores bandas surgidas nos últimos vinte e cinco anos. Excelente produção, composições e performances de qualidade. Muitos belos elementos e lindas atmosferas pra fornecer os jarros emocionais que as músicas muitas vezes necessitam. Enfim, um registro imperdível. 



Track Listing

1.Deadwing - 9:46
2.Shallow - 4:17
3.Lazarus - 4:18
4.Halo - 4:38
5.Arriving Somewhere But Not Here - 12:02
6.Mellotron Scratch - 6:56
7.Open Car - 3:46
8.The Start Of Something Beautiful - 7:39
9.Glass Arm Shattering - 11:12


Parece que foi ontem (Parte 4): Os piores discos de rock n’ roll de todos os tempos

 

Confesse: quantas vezes você já se revoltou ao notar que um disco do qual gosta muito não faz parte das famigeradas listas dos 10 mais (ou 50 ou 100) elaboradas de vez em quando pelos críticos descolados daquelas famosas revistas de rock? Fãs amam odiar essas listas e não duvido também que quem as faz não se dá ao trabalho de disfarçar certo prazer sádico em provocar os leitores. Mas existe coisa pior. Aliás, 50 vezes pior.

Pois foi editado em 2012 e chegou às livrarias dos Estados Unidos o livro “The Worst Rock ’n’ Roll Records of All Time”, com uma lista dos 50 piores singles, dos 50 piores álbuns e também dos piores roqueiros de todos os tempos. Jimmy Guterman, um dos autores do livro, já escreveu para a Rolling Stone e a Spy, entre outras revistas do ramo, e o outro, Owen O’Donnell, é o editor da Contemporary Theater, Film, and Television. Os dois são hilários, ferinos e até mesmo subversivos em seus comentários, e o mais interessante é que não listam apenas o óbvio, mas também metem o pau em discos de algumas das vacas mais sagradas desse curral chamado rock and roll.

Dei-me ao trabalho de traduzir (mal e porcamente, claro) pequenos trechos de algumas resenhas dos piores álbuns, só para servir um aperitivo do farto banquete que as páginas deste livro nos reservam. E acredite: se já é revoltante descobrir que um disco que a gente ama de paixão não entrou para a lista dos melhores, o que dizer da sensação de ver esse mesmo disco entre os piores?


Emerson, Lake and Palmer – Tarkus (34º pior)

Tarkus deve ser uma ópera rock. Ao menos o primeiro lado, que é todo uma única música (nome das seções: “Eruption”, “Stone of Years”, “Iconoclast”, “Mass”, “Manticore”, “Battlefield” e “Aquatarkus”). Dissemos “deve ser” porque não temos certeza. Existe uma imagem do velho Tarkus na capa. Ele se assemelha a um tatu gigante com o corpo de um tanque. A trama nunca se esclarece nas canções, mas graças ao pintor William Neal a parte interna do álbum é repleta de figurinhas que supostamente contam a história.

Parece que Tarkus foi expelido de um vulcão, lutou com várias combinações de animais/veículos de batalha e eventualmente passou por cima de todos. Mas você adivinhou tanto quanto nós: estas cenas devem corresponder aos muitos dramas desse lado do disco. Sabemos que elas são dramáticas porque o andamento é um tanto acelerado e Greg Lake grita suas questões vazias um pouco alto demais. Tarkus representa alguma coisa (tecnologia? natureza? um rato que uma vez mordeu o Greg no tornozelo?), mas seu simbolismo é obscuro demais.


Iron Butterfly – Live (27º pior)

Você quer o bombástico? Nada pode ser mais bombástico do que isto. Live é a apoteose do excesso blooze (o blues não autêntico, geralmente tocado por músicos brancos). Seus riffs são mais prolixos e distorcidos do que aqueles do Vanilla Fudge. Os esforços de Doug Ingle para extravasar suas emoções significam apenas que ele grita “Huh!” um pouco mais alto e demoradamente. O conjunto tocando é como se não existisse; durante todas as faixas, órgão, guitarra e vocais brigam pelo mesmo espaço inútil.

Quando algum deles ganha uma chance de brilhar sozinho nos holofotes, os arranjos se tornam ainda mais desnorteados. Aqui, a inevitável versão de um lado inteiro de “In-a-Gadda-Da-Vida” ganha dois minutos a mais do que aquela interminável versão de estúdio. Contudo, qualquer esperança de que esses dois minutos extras possam ser usados para explicar que diabo está acontecendo é aniquilada imediatamente. Tudo o que você ganha são longos solos. É como se o guitarrista tivesse comprado seu primeiro pedal wah-wah pouco antes do show e não pudesse parar de tocá-lo. Mais de uma vez um falso final aparece. Você pensa que a música acabou, sente que o volume começa a diminuir, mas não: solo de órgão! solo de bateria! outro solo de órgão! E todo esse lixo em um disco da Atlantic: ao menos Otis Redding não estava vivo para ouvir isso.


Roger Waters – Radio K.A.O.S. (22º pior)

A cada poucos anos um tipo especial de álbum emerge. Um álbum abastecido por uma colossal inaptidão e uma perversa e fascinante falta de habilidade para comunicar mesmo as idéias mais simples sem embalá-las em pretensão. Radio K.A.O.S., o segundo disco conceitual de Roger Waters desde que ele saiu do Pink Floyd para fazer montanhas de dinheiro sozinho, é esse tipo especial de álbum. Radio K.A.O.S. é a história de Benny, um mineiro de carvão do País de Gales que ama seu aparelho de rádio amador, e seu irmão gêmeo, Billy, que é um vegetal. Por razões muito complicadas e que não valem a pena perder tempo explicando, Billy estraçalha telefones a pontapés e Benny é embarcado num navio para a América. O tio avô deles, David, se sente culpado por ter inventado a bomba atômica. Benny começa uma amizade com um detestável disc jockey de Los Angeles. Billy salva o mundo da destruição nuclear, e o tio Dave começa a se sentir um pouco melhor sobre si mesmo após assistir ao festival “Live Aid” na telinha. O álbum acaba. Bom, nós estamos relatando essa história toda porque não existe música para se escrever a respeito.


The Moody Blues – Days of Future Passed (19º pior)

O grande hit deste disco foi “Nights in White Satin”, embora só tenha sido lançado como single mais de quatro anos depois da realização do LP (em 1972, os Moodies estavam desesperados por um single Top 10). “Nights in White Satin” é um lugar de sonhos para onde sempre vão os problemas que os pequenos cérebros enfrentam quando tentam filosofar sobre o sentido da vida em uma canção pop. Em vez de apresentar uma visão clara capaz de fazer as pessoas relacionarem num nível pessoal, a letra da música se fia em frases banais, do tipo “Just what you want to be / You will be in the end”. Parece mais um daqueles slogans de recrutamento do exército americano do que uma visão de mundo bem pensada. Através de todo o álbum, enquanto a banda se agarra apenas nas canções, a orquestra conduzida pelo maestro Peter Knight é relegada ao papel de ir conectando os pedaços. No entanto, na climática “Nights in White Satin”, o arranjo sinfônico domina toda a canção: o cantor e o maestro então competem para ver quem se esmera mais.


Queen – Queen II (14º pior)

Queen jactava-se nas capas de seus primeiros álbuns (entre eles Queen II) que ali “ninguém tocou sintetizador”. O que isto na verdade significava é que ninguém na banda teve saco de sair para comprar um, pois o incessante overdub de mais guitarras, pianos e imitações de cravo praticado pela banda desmentia a “honestidade musical” que geralmente acompanha as bandas que são contrárias ao uso do sintetizador. Uma massa sonora de qualquer instrumento pode ser tão corrompida e soar tão falso quanto um sintetizador, como o Queen prova ao longo de todo Queen II. Sempre que os cantores Mercury ou May estão perto de tropeçar em uma nota que eles não conseguem alcançar, espirais de teclados ou ataques de guitarra surgem para encobrir o erro. Claro que se o grupo estivesse menos interessado em exibir suas linhas vocais e mais em explorar as linhas melódicas que poderiam engrandecer o som, esse problema não existiria. Só que ao invés de serem quatro membros abrindo mão de seus egos individuais em favor do coletivo, o Queen sempre se alternou sob os holofotes. Ao vivo, cada membro do grupo tem um solo bem grandinho para que possa implorar: “Olhem para mim!”.


Jethro Tull – Aqualung (11º pior)

Ambição é uma coisa boa. Ela encoraja os artistas e dá a eles a pretensão de ir mais longe, para explorar e talvez dominar novas áreas. Ambicioso como ele só, Ian Anderson, líder do Jethro Tull, é um daqueles habituais performers inúteis que nos fazem rir quando se aventuram a fazer um grande manifesto. Em 1971, ele apareceu com uma idéia, convencido de que ninguém antes dele na história da civilização ocidental a havia considerado: a de que haveria problemas com as religiões organizadas e que talvez houvesse mais caminhos para servir a um bem superior do que aqueles que ele aprendeu quando era garoto. No entanto, sua desajeitada colagem de apelos teatrais e sonoridade pseudometal, teologia de segunda mão e uma mal informada nostalgia rural fez de Aqualung um enorme sucesso entre os adolescentes de todas as idades.


Yes – Tales from Topographic Oceans (10º pior)

Todos sabem que é preciso tridestilar uma vodka para que ela se preste a beber. Imagine então que Tales… é o pensamento do mundo sendo destilado pela sétima vez. Só que não temos aqui um barman, mas cinco das mais difusas personalidades (e, juntos, os mais confusos pensadores) tentando coexistir em uma banda de rock. O tecladista Rick Wakeman e o baterista Alan White são os únicos genuinamente roqueiros do grupo, embora a ideia que Wakeman fazia de inventividade era liberar peidos sonoros de seu Hammond B-3 e White sempre pareceu tão desnorteado pelos elaborados desarranjos da banda que se recusava a manter uma batida. O baixista Chris Squire era um guitarrista frustrado que abarrotava cada espaço aberto de uma canção com um monte de notas, e a maneira subclássica de tocar do guitarrista Steve Howe procurava (com sucesso, aliás) afastá-lo de forma irrevogável das bases bluseiras da guitarra rock. Tudo isso era coroado pela voz etérea de Jon Anderson, que visava ser inocente e infantil, mas na realidade era insolente e pueril. O desastre era inevitável e não deu outra.


The Doors – Alive, She Cried (8º pior)

Alive, She Cried (você sabe que é Doors porque até o título é um verso ruim) é outro na parada aparentemente sem fim dos produtos Doors que a Elektra continua a lançar para capitalizar a recusa de Morrison em morrer como filão comercial. O álbum consiste em gravações ao vivo feitas entre 1968 e 1970 e está focado nas teatralizações baratas e na fantasia sexual que as pessoas na realidade querem dizer quando se referem a Morrison como “dinâmico”. A faixa de abertura, uma versão do clássico “Gloria” da banda Them, de Van Morrison, é o suficiente para fazer você correr de volta à loja de discos e dizer ao balconista que comprou o disco por engano e implorar para que ele o troque. “Gloria” começa sem maiores problemas, já que a banda chega perto da versão original. No entanto, as coisas começam logo a se degenerar. Ao invés de continuarem tocando a música, o grupo passa a tocar o que Jimbo acha que a música é. Ou seja: tanto literal quanto figurativamente, uma longa chupação de pau. O tempo da música diminui e depois aumenta para simular o ato, e Morrison grita “It’s getting harder!” entre gemidos. Isto é Morrison no que ele tem de mais verdadeiro: a única coisa que ele se importa, musicalmente ou o que for, é o seu próprio prazer. No final, nós deixamos “Gloria” nos sentindo insatisfeitos e um tanto degradados. Foi demais para engolir.

Está bom ou não? Pois esses são apenas trechos desse delicioso livro, repleto de informações e sandices bem fundamentadas. Os autores ainda listam discos do U2 (“Se o U2 não fosse tão cheio de merda, eles não seriam tão grandes quanto costumam ser”), David Bowie, Bob Dylan (dois discos), The Byrds, Bon Jovi, Rolling Stones e o campeão (o pior dos piores) Elvis Presley, entre outros. E olha que eu não falei nada dos piores singles e dos piores roqueiros (Paul McCartney é um deles!).

Jimmy Guterman e Owen O’Donnell prometem para breve o lançamento dos melhores discos de rock de todos os tempos, mas eu não acredito que ele seja tão bom quanto este. 

Kiss: os discos solos de 1978

 

 Em 1978 o Kiss já era uma banda de muito sucesso com seis ótimos discos de estúdio, a saber KissHotter Than HellDressed to KillDestroyerRock And Roll Over e Love Gun, além de outros dois gravados ao vivo, sendo que o primeiro deles, Alive! (1975), foi o responsável direto pelo enorme sucesso dos americanos. Para muitas bandas esses são números de anos e anos de carreira, entretanto isso tudo foi atingido em apenas quatro anos. Quem conhece a história do Kiss sabe que nessa época eles estavam extrapolando os limites do rock and roll, tornando-se heróis de histórias em quadrinhos e fazendo sucesso até com as crianças que usavam os mais variados artigos de merchandising dos mascarados.Nesse ponto aproveito o espaço para fugir um pouco do assunto e comentar algo que sempre me intrigou: o fato de parecer que as coisas aconteciam muito mais rápido nas décadas de 70 e 80 do que atualmente. Procurem ler as histórias das bandas dessa época e talvez todos tenham a mesma impressão. As histórias e acontecimentos narrados durante esse período são inúmeros, muito diferente dos dias de hoje em que as bandas parecem que vivem em marcha lenta. Para corroborar essa teoria cito a própria história do Kiss que em apenas quatro anos tiveram tempo para ralar muito, ficarem super famosos e até começar as brigas internas.

Mas voltando ao assunto principal desse texto. Como todos sabem, o sucesso é algo que pode afetar a cabeça daqueles mais susceptíveis. Os problemas com drogas e egos infladíssimos começaram a afetar o relacionamento interno da banda. O Kiss sempre teve seus líderes muito bem definidos, Gene Simmons e Paul Stanley, mas a abertura, mesmo que limitada, que todos tinham para se destacar, inclusive cantando algumas músicas, incentivava as disputas internas já que todos queriam sempre um pouco mais de evidência. Todo mundo compunha suas canções e tendo quatro compositores em um mesmo grupo é de se imaginar que o número de composições excedia os limites que poderiam entrar em um álbum. Além de que alguns não eram lá grandes compositores e muito do que produziam não tinha qualidade suficiente para brigar com as produções dos outros componentes.

Essa situação estava gerando um clima insuportável no relacionamento entre os integrantes. Paul Stanley e Gene Simmons tinham maior número de canções nos álbuns e Peter Criss e Ace Frehley estavam descontentes. Esse tipo de situação já fez com que muitas e muitas bandas tivessem baixas em seus line up, sendo que a alternativa natural encontrada por muitos para ter liberdade para gravar suas músicas é muito conhecida de todos: as carreiras solo.

Só que Gene Simmons e Paul Stanley, conhecidos estrategistas, sabiam que o grupo e sobretudo a imagem dele como um todo precisava de Ace e Peter. A solução encontrada por eles foi de que cada um teria a liberdade de gravar um disco solo, porém eles sairiam com capas parecidas, cada um dedicaria o seu álbum aos outros três e, principalmente, estariam sob o nome da banda. Esse último detalhe escapa da percepção de muitos e é uma sacada de gênio, afinal os fãs eram praticamente obrigados a comprar todos os quatro discos. Ou seja, a arrecadação que teriam em um eventual novo disco foi multiplicada por quatro. O sucesso de um disco em especial seria colhido não só pelo autor do álbum, mas seria também relacionado à banda. Por outro lado um eventual fracasso seria diluído e amortecido pelo nome de prestigio que o Kiss já possuía. Além de que esses discos solos acabariam servindo para dissipar um pouco a animosidade que havia entre os componentes já que passar um tempo longe um do outro poderia curar algumas feridas.

Mesmo com algumas amarras todos tiveram liberdade para fazer o que quiseram e com músicos de suas preferências. Alguns preferiram trabalhar com diversos músicos convidados e muita gente conhecida, e até importante para a própria história do Kiss nos anos posteriores, acabou participando desses álbuns. Para combinar com a megalomania típica de Gene Simmons, ele acabou convidando uma legião de pessoas para participarem do álbum, enquanto Ace Frehley foi muito mais contido nesse quesito. Musicalmente o Kiss sempre se mostrou influenciado pelo glam rock e southern rock, mas esse último apareceu mais nesses álbuns. A seguir um breve comentário sobre cada um deles.

Gene Simmons

O baixista do Kiss não quis saber de tocar baixo em seu próprio disco solo. O posto ficou a cargo de Neil Jason. Muita gente conhecida participou do álbum como Joe Perry do Aerosmith, Bob Seger, Rick Nielsen do Cheap Trick e a namorada do linguarudo à época, Cher. O álbum de Gene é o que contém o maior número de músicas, onze ao todo. Uma delas foi parceria com outros músicos e outra é uma versão (meia-boca) de uma música da trilha sonora da adaptação de Pinóquio de Walt Disney, “When You Wish Upon a Star”. É também o mais “experimental” de todos os álbuns tendo diversos tipos de músicas juntas sem seguir um estilo definido. O single ficou a cargo de “Radioactive”, que é uma boa música com cara de que entraria em um disco do grupo, mas no meu entender a melhor do álbum é “See You Tonite”. Essa última entrou no disco acústico gravado pela MTV lá em 1994 e ficou ainda melhor, apesar de sem bem fiel, que a original. Outra que é bem legal e ficaria muito boa com o próprio Kiss é “See You in Your Dreams”. Algumas delas chegam a ser embaraçosas de tão ruim como “Tunnel of Love” e “Always Near You/Nowhere to Hide”. O álbum de Gene acabou sendo, pelo menos para mim, a maior decepção, pois apesar de ter algumas boas músicas a expectativa era maior por ter sido feito por um dos líderes da banda e por quem a gente sempre espera coisas boas.

Ace Frehley

Talvez quem mais aproveitou o fato de estar gravando um disco solo foi Ace. Tirando a bateria, que ficou nas mãos de Anton Fig, ele praticamente gravou todos os outros instrumentos. Fig acabou sendo utilizado nas sessões de gravação de alguns dos discos subseqüentes do próprio Kiss. O álbum de Ace acabou sendo a maior surpresa, é certamente o melhor álbum dos quatro e possui a música de maior sucesso entre todas as que foram gravadas: o single “New York Groove”. Por ironia essa música foi o único cover do álbum. É uma composição de Russ Ballard que já havia sido gravada por uma banda britânica chamada Hello. “Rip It Out” é tão boa ou melhor que o single escolhido e facilmente entraria em um álbum do Kiss. Outra que tem a cara de uma canção do Kiss é “Speedin’ Back to my Baby”. Paul Stanley disse que no início do processo de gravação ele temia que Ace não fosse capaz de fazer um álbum completo, muito provavelmente por conta das drogas. Acho que ele quebrou a cara.

Peter Criss

Se Paul achava que Ace não era capaz de fazer um álbum completo sozinho, no fim das contas quem precisou de ajuda foi Peter. É só lembrar que de todos eles, o baterista é o que menos tem material dentro dos discos do Kiss. E isso se refletiu em seu disco. Das dez músicas do álbum ele gravou, ou regravou, quatro músicas que não são de sua autoria e nenhuma delas foi composta somente por ele. Stan Penridge, Vini Poncia e Sean Delaney, músicos que sempre ajudaram o Kiss, tiveram bastante trabalho nesse álbum. Um detalhe muito importante é que metade das músicas que entraram no disco são baladas, em uma evidente tentativa de repetir o sucesso que Peter conseguiu com “Beth”, do álbum Destroyer de 1976. Na intenção de transmitir sentimento essas canções acabam soando um pouco forçadas. Não consigo identificar nenhum destaque evidente entre as músicas, talvez somente “You Matter to Me”, um dos singles, e “I Can’t Stop the Rain” têm um pouco mais de evidência. Foi o único que álbum que acabou tendo dois singles e muito provavelmente o segundo foi lançado para tentar diminuir o fracasso do primeiro, que foi “Don’t You Let Me Down”.

Paul Stanley

O álbum de Paul era o que mais tinha tudo para dar certo. Afinal Stanley é de longe o melhor compositor da banda e o mais centrado também. Enquanto Gene estava pensando em uma possível carreira cinematográfica, Paul Stanley nunca deixou de pensar apenas em música. O seu disco só não é o melhor de todos porque, como foi dito antes, Ace Frehley surpreendeu todo mundo. Paul Stanley gravou nove canções sendo que apenas três delas não foram compostas apenas por ele. Ou seja, enquanto todos os outros acabaram incluindo versões de outros compositores, Paul resolveu não fazer isso e boa parte seria muito bem vinda em um disco do Kiss. O single escolhido foi a melosa e bonitinha “Hold Me, Touch Me (Think of Me When We’re Apart)”, mas novamente acho que se fosse escolhida outra a recepção seria melhor. E nesse caso eu escolheria “Move On”.

A comparação entre os discos foi algo inevitável a ainda continua assim. Se você ler ou assistir alguma entrevista com os quatro sobre o assunto teremos opiniões totalmente diferentes entre eles mesmos. A única opinião que é unânime é a de que Ace surpreendeu, mas podem notar que todos falam que seus respectivos discos foram os que mais venderam (modéstia nunca foi o forte dos integrantes do Kiss mesmo). Mas sobre essa questão podemos ser mais específicos. A seguir vou apontar algumas posições de rankings importante para a música para que cada um tire suas próprias conclusões.

Na Billboard os discos alcançaram as seguintes posições: Gene Simmons (22º), Ace Frehley (26º), Paul Stanley (40º) e Peter Criss (43º). Os singles tirados desses discos, que foram limitados a apenas um por álbum, exceto para o do Peter, tiveram as seguintes posições: do Ace, “New York Groove” (13º); de Paul, “Hold Me, Touch Me (Think of Me When We’re Apart)” (46º); de Gene, “Radioactive” (47º) e, de Peter, apesar de ter dois singles, nenhum deles conseguiu ficar entre os 100 primeiros do chart da Billboard.

A revista Rolling Stone e o site All Music possuem classificação baseada em estrelas para avaliar os álbuns. Esses comparativos em especial são muito interessantes, pois são atuais e ajudam a entender como esses discos envelheceram durante todos esses anos. Na Rolling Stone as notas em geral são baixas sendo que os discos de Peter Criss e Paul Stanley receberam apenas uma estrela, enquanto o de Ace Frehley recebeu duas e o de Gene Simmons duas e meia. O All Music já é um pouco mais generoso dando duas estrelas para Paul e Peter, três para Gene e quatro para Ace. Todos esses dados mostram que as opiniões não conseguem ser unânimes exceto pelo fato de que no geral o disco de Peter Criss não agradou muito.

A seguir vou colocar algumas frases interessantes ditas pelos quatro sobre esses discos. Essa frases foram tiradas do livro Kiss: Por Trás da Mácara – A Biografia Oficial Autorizada, que é uma ótima leitura para os fãs do quarteto. Não estranhem que não transcreverei muitas frases de Peter Criss, isso acontece porque simplesmente não existem, ou foram deixadas de fora, e há comentários dele apenas sobre o seu próprio lançamento.

Sobre o Disco de Paul Stanley:

Se eu pudesse daria seis estrelas. Acho que é um disco muito bom; as composições são ótimas.” (Paul Stanley)

“…o disco solo que mais gostei foi o de Ace. Eu prefiro quando Paul faz letras mais radicais, mas nele há muita coisa tipo “o amor é isso, o amor blá blá blá”. Quando Paul começa a ficar romântico eu desligo. Duas estrelas.” (Gene Simmons)

Eu daria cinco estrelas à Paul. Achei o álbum solo dele o segundo melhor de todos”. (Ace Frehley)

Sobre o disco de Gene Simmons:

Eu daria nota três à Gene.” (Ace Frehley)

“…à vezes Gene fica mais envolvido com a embalagem ou com a impressão de que algo cria do que realmente está ali. Esqueça a lista de trinta celebridades. Acho que ele ficou mais preocupado com a presentação em vez de compor suas melhores músicas. Eu daria três estrelas à Gene.” (Paul Stanley)

Pessoas como Jonh Lennon, David Bowie, Jerry Lee Lewis concordaram em aparecer no disco. Ouvi que Paul McCartney estava interessado em aparecer. Quando ouço uma música de B. J. Thomas, eu curto. Ao mesmo tempo, eu gostava dos Monkees, do Deep Purple e do Crazy World of Arthur Brown. Se você gosta de Led Zeppelin, você não pode gostar de B. J. Thomas?” (Gene Simmons)

Sobre o disco de Ace Frehley:

Eu daria nota cinco. Paul e Gene são parcialmente responsáveis por eu ter feito um disco tão bárbaro, porque, imediatamente após nos separarmos para fazer o disco, eles realmente deixaram implícito para mim que eu não daria conta do recado.” (Ace Frehley)

Eu daria nota próxima a três para o álbum solo de Ace poruqe pelo menos ele é honesto. Quando ouvi “Rip It Out” pensei, ‘muito bem Ace’.” (Paul Stanley)

Acho que ele nem conseguia distinguir o pé esquerdo do direito nauqela época. Ainda acho que ele vive um pouco fora da realidade. Três estrelas.” (Gene Simmons)

Sobre o disco de Peter Criss:

Eu daria nota cinco, não por ser meu ou por eu ser egoísta, mas porque na verdade, eu trabalhei muito. Eu tinha acabado de ter um acidente de carro, todos os meus dedos estavam quebrados. Quebrei a costela, tive afundamento dos ossos do crânio. Tive que fazer uma plástica. Eu toquei todas as faixas muito bem, merecia tirar um A, mesmo com todas aquelas braçadeiras e esparadrapos.” (Peter Criss)<

Eu daria nota três para Peter.” (Ace Frehley)

Acho que o disco de Peter resume bastante qual era o problema com a banda, afinal de contas. Não consigo achar nada do álbum. Não posso dar nenhuma estrela à ele.” (Paul Stanley)

Zero. De todos os discos que fizemos sozinhos ou em grupo, acho que este mostrou que o cara que estava por trás dele não tinha a mínima noção do que fazer.” (Gene Simmons)

Como dito lá no início do texto, a idéia dos álbuns foi tentar curar algumas feridas e apaziguar ânimos entre os músicos, porém isso ajudou a manter a formação original apenas por mais um ano. Já que Peter Criss saiu no final de 1979. Ace ainda ficou até o lançamento de Creatures of the Night e logo saiu também.

Espero que vocês se interessem novamente em ouvir esses discos. Podem não ser clássicos como os álbuns do próprio Kiss, mas são registros importantíssimos de uma das maiores e mais amadas bandas de todos os tempos originados de uma atitude inédita na história da música.

Pesniary: da Bielorrússia com amor

 

Contrariando aqueles que acham que a Lituânia é a Meca dos proggers que buscam nas obscuridades progressivas uma forma de auto-estima, faz tempo que eu alimento meu ego garimpando também os discos de grupos de outros países da ex-Cortina de Ferro. E prefiro o progressivo porque nenhum outro estilo dentro do rock soube acolher tão bem a tradição folclórica e as raízes sonoras dos países que ele, na falta de uma expressão melhor, invadiu. Desculpe se faço os Stalin da vida e todo o politburo do Partido Comunista da ex-União Soviética revirar nos devidos caixões, mas o rock talvez tenha sido o mais bem sucedido (e um dos mais temidos) aliciador capitalista da juventude vermelha do pós-guerra. Basta saber que ele também estava incluído na pauta de aberturas que Aleksander Dubcek queria promover na Tchecoslováquia com a chamada Primavera de Praga. E deu no que deu.
A Bielorrússia (ou Belarus), um país vizinho da Lituânia, tem 80% do seu território coberto por florestas e seus habitantes se concentram nas áreas urbanas em volta da capital Minsk e das outras capitais das divisões regionais do país. Seu nome deriva da expressão Rússia Branca, que descrevia a área da Europa Oriental coberta por neve e povoada por povos eslavos. O homem moderno já andava por lá entre 5000 e 2000 anos A.C. Isso nos dá uma ideia do tamanho de sua história e da riqueza de suas tradições. Essas, datam dos tempos medievais e como o país esteve sempre estrategicamente localizado na junção das rotas comerciais que interligavam a Europa Oriental e a Ocidental, sendo alvo constante das políticas expansionistas de seus vizinhos, os habitantes da Bielorrússia fizeram da preservação de sua língua e de suas tradições a principal marca de sua identidade cultural.
Pode-se dizer que o rock em Belarus começou em 1968 em torno da figura talentosa e carismática de Vladimir Mulyavin, um músico de formação clássica e entusiasta do folclore de seu país. Ele já participava de festivais em 1957 e colecionou vários títulos em sua longa carreira (morreu em 2003, vítima de um acidente de trânsito), como o de “Trabalhador Honrado da Cultura da Polônia”, em 1980, até o de “Artista do Povo da URSS”, em 1991, o maior prêmio concedido pela Mãe Rússia aos seus filhos desvairados.
Desvairado pode não ser uma palavra feliz ou justa para descrever Vladimir, mas se encaixa perfeitamente na ideia que o governo comunista fazia das pessoas que se deixavam influenciar pela crescente popularidade do rock ocidental nos países soviéticos durante os anos 60. Tanto que o governo russo tentou controlar de perto cada aspecto da produção de música popular, do estilo musical e conteúdo das letras até a forma dos artistas se apresentarem no palco e o comportamento do público. Também tratou de incentivar a criação de conjuntos vocais e instrumentais que pautassem suas mensagens de um conteúdo não político e as executassem de forma comportada. Foi nesse clima de censura que o público de Belarus conheceu um desses conjuntos, o PESNIARY, comandado pelo nosso Vladimir Mulyavin, um grupo de músicos formados que não cantava em russo, mas na língua de seu país e que, apesar disso, soube ser palatável aos censores de plantão.
Deixando de lado esses aspectos políticos, mas fundamentais para entender o som do Pesniary, vamos nos concentrar na banda: entre 1967 e 68, Mulyavin  formou o conjunto Liavony (Os Bufões) para extravasar seu entusiasmo pela música folk e seu crescente amor pelos Beatles. Nessa época tocavam versões de “Yesterday” e “Ob-La-Di Ob-La-Dá” com letras vertidas para o russo.  No ano seguinte, porém, o músico trata de levar mais além o trabalho despretensioso do grupo e decide mudar seu nome para Pesniary (Os Contadores de Histórias), adaptando as tristes e delicadas canções do folclore de Belarus para instrumentos modernos. O resultado é absolutamente único, um amálgama excêntrico de vários instrumentos (haviam nove elementos em sua formação) e de incríveis trabalhos vocais. Não era apenas criar arranjos roqueiros para músicas folk, mas desenvolver e enriquecer essas músicas sem abdicar de sua alma e paixão originais.  De uma maneira particularmente russa, eles foram psicodélicos em seus primeiros dias, amadurecendo e crescendo em complexidade até desenvolver trabalhos conceituais na melhor tradição progressiva lá pela segunda metade dos anos 70.
Pena que não é fácil encontrar informações sobre o Pesniary em sites oficiais e de fã-clubes que não sejam na língua russa. E existem vários, pois a banda foi uma das mais populares da União Soviética, vendendo aos milhões cada LP e single lançados. Fosse em qualquer país capitalista e seus músicos estariam milionários, mas na Rússia recebiam apenas uma ajuda de custo da única gravadora do país, a Melodyia, que, por outro lado, cobria todos os custos de gravação e lançamento e cuidava da promoção. No auge de sua popularidade, chegaram a fazer até quatro shows dia sim, dia não e, em 1976, realizaram uma grande e bem sucedida excursão pelo sul dos Estados Unidos e se apresentaram no Midem, em Cannes.
Bom, como o assunto tratado aqui é rock progressivo, vamos passar direto para o quarto disco do Pesniary, lançado em 1978 e cujo nome em inglês é Byelorussian Folk Songs. A música que interessa aqui é a que abre o LP, “Perapyolachka (A Codorniz)”. Não tenho ideia do que diz a letra, mas sei que é uma metáfora sobre a difícil condição feminina nos tempos passados. A melodia tormentosa e os vocais intensos e sofridos sugerem uma tristeza de fazer qualquer cossaco depressivo ficar uma semana de cama, em posição fetal. As vocalizações são no mínimo exóticas para os ouvidos ocidentais, e mesmo aqueles que já estão fartos das refeições diárias de Close to the Edge e outras iguarias do cardápio prog inglês, vão estranhar o arranjo excêntrico de flautas, violinos e outros instrumentos que eu nem sei como dizer o nome em português. O resultado final, porém, é marcante, como se a cápsula do toca discos transportasse o ouvinte para um universo sonoro totalmente desconhecido. Uma viagem de pouco mais de dez minutos de duração, mas com a sensação de uma aventura completa. O restante do disco também tem vários climas progressivos, com flautas, violinos, órgão, piano forte e até mesmo um som que lembra o Theremin, mas na realidade é apenas a voz de um dos cantores.
Milyavin, na segunda metade dos anos 70, também se rendeu aos álbuns conceituais. Passou a estudar a obra do poeta e escritor Ivan Daminikavich Lutsevich,  que escrevia sob o pseudônimo de Yanka Kupala, considerado um dos maiores escritores belarus do século XX, e compôs duas óperas-rock baseadas em seus poemas. A primeira delas, Pesnia pra Doliu (A Canção do Destino), de 1976, teve algumas apresentações ao vivo e nunca foi lançado em LP. Eu ouvi no Youtube e achei muito Broadway para o meu gosto. Já Gusliar (O Tocador de Gusla, um instrumento de cordas típico da região dos Balcãs), lançada em LP em 1979 e baseada no poema “Kurgan”,  e também na música do compositor Igor Luchenok, é uma das mais incríveis experiências progressivas que meus ouvidos já viveram.
Andei lendo por aí algumas comparações entre o som de Gusliar e os trabalhos de grupos prog italianos como Banco del Mutuo Soccorso, Premiata Forneria Marconi, Bloco Mentalle e Alusa Fallax. Até pitadas de Ennio Morricone e Jesus Christ Superstar enfiaram no meio. Bobagem. Algumas pessoas parecem necessitar de pontos de referência confortáveis para compreender qualquer coisa estranha ou inexplicável. Como se cortar em tiras a foto de um boi ajudasse a explicar melhor a sensação de comer um bom bife.  E tem também o fato de que eu duvido que Vladimir conhecesse essas bandas na época. Gusliar é um épico ambicioso e soa muito original. 

Do que eu entendi do enredo, o tocador de gusla é convidado a tocar no casamento de uma princesa e não se contém enquanto não denuncia o estado de extrema pobreza em que vive o povo. O rei então o condena a ser enterrado vivo. Mais tarde, sobre o túmulo do músico nasce um carvalho cujas folhas jovens, sopradas ao vento, vão contando a história do tocador de gusla. São quase trinta e sete minutos de tensão dividida em dezenas de texturas. Temos piano interagindo com metais, bateria duelando com o baixo, moog em vôos kamikaze, vocais em acapela e corais suntuosos. O som é assombroso, por vezes étnico, no limite da opressão, mas meticulosamente construído emocional e melodicamente. Não me arrisco a ir além nesta descrição porque adjetivo nenhum é capaz de fazer justiça à surpresa que é ouvir Gusliar pela primeira vez. E tem razão quem acha que eu exagero. Sou completamente apaixonado por esse disco.

O Pesniary fez ainda mais sucesso nos anos 80 e 90, mas seu som ganhou roupagens mais pop. Teve inúmeras trocas em sua formação e permaneceu vivo mesmo após a morte trágica de seu líder. Hoje existem três Pesniary diferentes em atividade na Bielorrússia. É que o legado de Vladimir Mulyavin é muito grande para ser carregado sozinho.
As músicas do Pesniary tratadas no texto:
Perapyolachka
Gusliar” (completo) 
Alguns vídeos do começo da carreira do Pesniary
1971 

CRONICA - ROXY MUSIC | Flesh + Blood (1980)

 

Roxy Music fez um retorno notável no final dos anos 70, redescobrindo o sucesso que tinham antes de sua separação. Em contrapartida, o grupo aumentou ainda mais o controle deslizante Pop, já iniciado em Siren . Mas se Ferry, Mackay e Manzanera estão dispostos a ir ainda mais longe nessa direção, não é do agrado de Paul Thompson. O baterista decide não continuar a aventura (ele se juntará brevemente a Gary Moore e depois a Concrete Blonde) e será substituído por músicos de estúdio. Flesh + Blood vai assim apresentar um grupo cada vez mais lambido e cada vez mais dançante. Primeiro para o grupo, o álbum apresenta duas capas adaptadas ao molho Roxy.

É justamente um deles que abre a bola. Não é particularmente fácil reconhecer "In The Midnight Hour", o lendário hit Soul de Wilson Pickett. Ferry transforma essa pequena fúria em um agradável coquetel mid-tempo. Enquanto alguns arranjos 'artísticos' permanecem (principalmente as guitarras), o essencial é super polido (a seção rítmica, o saxofone) para oferecer um cenário perfeito para a voz do crooner do cantor. Um pouco sábio, dirão alguns, muito agradável, outros retrucarão. A balada "Oh Yeah" nos traz de volta ao super polido "Dance Away" do álbum anterior sem ser um copy-paste. Sim, é claro que o aspecto vanguardista e extravagante dos primórdios ficou para trás e que agora se trata da música para a noite chique. A propósito, falando em chique, não há como negar que a banda homônima de Nile Rodgers influenciou Ferry em seus arranjos rítmicos nítidos e dançantes para a bela "Same Old Scene". Uma faixa que inspirou muitas bandas da New Wave que se seguiram (Duran Duran, Talk Talk, Frankie Goes To Hollywood…) e é uma das melhores dos anos 80 em termos de faixas disco pop. A atmosférica "Flesh And Blood" vai ainda mais longe no lado New Wave, indo até abertamente para o lado Synth Pop. Pensamos em Gary Newman, mas com uma voz aveludada. Frankie Goes To Hollywood…) e que é um dos melhores títulos dos anos 80 em termos de disco Pop. A atmosférica "Flesh And Blood" vai ainda mais longe no lado New Wave, indo até abertamente para o lado Synth Pop. Pensamos em Gary Newman, mas com uma voz aveludada. Frankie Goes To Hollywood…) e que é um dos melhores títulos dos anos 80 em termos de disco Pop. A atmosférica "Flesh And Blood" vai ainda mais longe no lado New Wave, indo até abertamente para o lado Synth Pop. Pensamos em Gary Newman, mas com uma voz aveludada.

A atrevida "My Only Love" é outro destaque do álbum com esta linha de baixo cativante e simples, seus arranjos muito elaborados, sua linha melódica mais pura, tudo aumentando de intensidade para o solo de Phil Manzanera e depois para o de Andy Mackay. Um dos títulos essenciais do período Roxy Music Pop, senão o auge do estilo. Depois disso, "Over You" e seu lado retrô dos anos sessenta com sons dos anos oitenta parecem mais anedóticos, embora não sejam desagradáveis. Se foi difícil reconhecer "In The Midnight Hour", "Eight Miles High" dos Byrds está simplesmente irreconhecível aqui. Um ritmo disco chique e arranjos substituem os sons psicodélicos e indianos do original. Alguns vão chorar lèse-majesté, mas devemos reconhecer a Roxy Music não só para não reproduzir o que já existia, mas sobretudo para se apropriar da peça fazendo uma versão igualmente digna de interesse. Apreciaremos tanto a cativante "Rain, Rain, Rain" com arranjos tão ricos quanto puros e hipnóticos. Apesar de uma linha de baixo sedutora e do retorno do oboé de Mackay, "No Strange Delight" é menos marcante mesmo que ainda extremamente bem produzida e um pouco mais aventureira. Pelo contrário, o final mais Pop do que New Wave na balada "Running Wild" acaba por ser bastante clássico. Ainda seremos mimados pelo solo de Manzanera. Rain” com arranjos tão ricos quanto minuciosos e hipnóticos. Apesar de uma linha de baixo sedutora e do retorno do oboé de Mackay, "No Strange Delight" é menos marcante mesmo que ainda extremamente bem produzida e um pouco mais aventureira. Pelo contrário, o final mais Pop do que New Wave na balada "Running Wild" acaba por ser bastante clássico. Ainda seremos mimados pelo solo de Manzanera. Rain” com arranjos tão ricos quanto minuciosos e hipnóticos. Apesar de uma linha de baixo sedutora e do retorno do oboé de Mackay, "No Strange Delight" é menos marcante mesmo que ainda extremamente bem produzida e um pouco mais aventureira. Pelo contrário, o final mais Pop do que New Wave na balada "Running Wild" acaba por ser bastante clássico. Ainda seremos mimados pelo solo de Manzanera.

Grande sucesso que abriu caminho para Duran Duran (que nunca hesitará em reconhecer sua influência), Flesh + Blood é provavelmente o melhor álbum da Roxy Music dos anos 80. Um senso meticuloso de arranjos lisos e sutis, uma produção com um som enorme, composições comerciais sem deixar de ser originais e um nível bastante constante do início ao fim. A sequência acabaria sendo um pouco mais doce, apesar da qualidade, para vendas ainda maiores. Mas isso é outra história…

Títulos:
1. In The Midnight Hour
2. Oh Yeah
3. Same Old Scene
4. Flesh And Blood
5. My Only Love
6. Over You
7. Eight Miles High
8. Rain Rain Rain
9. No Strange Delight
10. Running Wild

Músicos:
Bryan Ferry: Vocais, Teclados
Phil Manzanera: Guitarra, Baixo (6)
Andy Mackay: Saxofone, Oboé
+
Paul Carrack: Teclados
Neil Hubbard: Guitarra
Alan Spenner: Baixo (3-5,8,10)
Neil Jason: Baixo ( 2,7,9)
Gary Tibbs: Baixo (1)
Allan Schwartzberg: Bateria (1-3,6-10)
Andy Newmark: Bateria (4.5)

Produtor: Rhett Davies & Roxy Music


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