sábado, 14 de janeiro de 2023

Kasabian – Kasabian (2004)


 

De um caldeirão de fórmulas vencedoras testadas em laboratório e em plateias aos saltos, misturadas com uma dose de paranóia psicotrópica, surge o álbum de estreia dos Kasabian, a melhor banda que Leicester viu nascer. Com os pés no apocalipse e os olhos nos grandes palcos.

A formação dos (na altura) Saracuse, pelos colegas de escola Sergio Pizzorno (guitarrista e co-compositor), Tom Meighan (vocalista) e Chris Edwards (baixista), a quem se juntou Chris Karloff como co-compositor, guitarrista e responsável pelos sintetizadores e programações, remonta a 1997. Para além de uma juventude passada na cena hardcore-techno do centro de Inglaterra, no cenário musical em redor assistia-se à explosão da conversão do acid-house no big beat e na música electrónica, com bandas como os Chemical Brothers ou os Prodigy a levarem o underground ao topo do mundo com álbuns como Dig Your Own Hole e The Fat of the Land, respectivamente; os Primal Scream a reinventarem-se no fritanço de Vanishing Point e XTRMNTR, os Death in Vegas a despontar com Dead Elvis e os Stone Roses acabados de cair em batalha contra si próprios, com a bandeira da baggy generation na mão.

Sete anos depois, já rebaptizados como Kasabian, em alusão à motorista posteriormente arrependida do envolvimento nos massacres perpetrados pelo clã de Charles Manson (a palavra soou bem a Karloff e é um critério tão válido como outro qualquer), surge o álbum de estreia homónimo. Tão explosivo como claustrofóbico, tão beligerante como paranóico, mas acima de tudo carregado de futuros hinos de estádio.

“Club Foot” abre as hostilidades com cerca de vinte segundos ambientais, em antecipação do que vai acontecer a seguir. E o que vai acontecer a seguir são guitarras de arame farpado, um baixo como um furacão, um Tom Meighan com o ímpeto de um Liam Gallagher a comandar multidões de pandeireta na mão e um refrão que começa com “ooooosh”. Quem vier à procura de densidade lírica entrou claramente na sala errada, mas se o objectivo for uma noite épica e murros no ar em festejo, 13 videojogos, 10 programas de televisão e 6 filmes em que “Club Foot” foi utilizado não podem estar todos enganados.

Logo de seguida, “Processed Beats” traz Madchester para o século XXI, com uma linha de baixo saltitante que poderia ter sido feita por Mani para os Stone Roses, uma performance vocal que encheria de inveja Shaun Ryder dos Happy Mondays se este conseguisse aperceber-se de alguma coisa que se passasse à sua volta na altura, e mais uma vez o nonsense da letra como forma de rebeldia. Uma guitarra acústica cola os elementos e em vez de solos maiores que a própria vida, Karloff toma as rédeas com sequenciadores e sintetizadores ocasionalmente dissonantes e tensos.

“Reason Is Treason”, que já tinha sido avançado meses antes como primeiro single, é o tema mais assumidamente indie rock do álbum, acelerado e directo ao assunto, com o twist de mais uma vez Karloff mudar de ideias a meio e mandar tudo abaixo com um sequenciador que inicia quase outra canção diferente, desta vez cantada por Pizzorno, voltando a acelerar no final e colando na perfeição para resolver a questão. “I.D.” manda todo o ímpeto abaixo e cai de cabeça no caldeirão dos psicotrópicos sem encontrar saída da insónia e paranóia que daí advêm. A paisagem sonora montada por Chris Karloff presta-se à escuta de headphones na escuridão, seja qual for o estado de sobriedade (ou falta dela) do ouvinte.

Passando pelo instrumental curto e quase bucólico “Orange”, chegamos a outro dos momentos-chave do álbum e da carreira dos Kasabian: “L.S.F. (Lost Souls Forever)” é um arranha-céus nascido e gravado numa quinta, com a mira apontada às multidões que mais cedo ou mais tarde viriam a encher festivais e estádios, um hit instantâneo tão infalível que ninguém quer realmente saber se a letra fala de disparates como prostitutas polifónicas ou Messias para animais (spoiler alert: fala sim senhor).

“Running Battle” marca o meio do álbum com mais uma quebra de ritmo, mais hipnótico que frenético, um escapismo nocturno que tem de ser feito sem acordar ninguém, até chegar lentamente à luz no crescendo que culmina no refrão de “Test Transmission”, o primeiro tema em que Sergio Pizzorno assume a voz principal apesar de já ter assegurado grande parte dos refrões até aqui.

Mais um interlúdio instrumental (“Pinch Roller”) separa-nos de “Cutt Off”, uma potencial banda sonora para um filme policial em LSD, com suspense, tensão libertada no refrão e até uma letra parecida com uma narrativa, apesar de meio desconexa como de costume.

O universo cinemático prolonga-se em “Butcher Blues”, novamente um momento em que o ritmo baixa. A título de curiosidade, “butcher” será a tradução mais aproximada do apelido Kasabian na sua origem arménia. Já a caminho do final do álbum, o terceiro instrumental “Ovary Stripe” soa mais a uma canção inacabada por falta de letra, até pela duração, enquanto “Orange” e “Pinch Roller” se assumem como interlúdios curtos. Na última faixa, “U Boat”, Sergio Pizzorno volta a assumir a voz principal e o ambiente é pairante como no limbo de final de festa em que as drogas já perderam o efeito mas a ressaca ainda não se instalou.

Com um milhão de álbuns vendidos e uma mão cheia de momentos que ainda hoje incendeiam plateias, o álbum homónimo dos Kasabian foi a sólida génese de um monstro. Sonicamente perderam-se grande parte dos ambientes psicadélicos daqui em diante, devido à saída não propriamente pacífica de Chris Karloff durante a gravação do segundo álbum (Empire), mas a capacidade de Sergio Pizzorno para construir refrões monumentais para a voz de Tom Meighan levou a banda ao topo das tabelas de vendas e cartazes de festivais ou estádios com lotações esgotadas, pelo menos até à detenção de Meighan por violência conjugal em julho de 2020 ter levado à sua expulsão da banda. Em outubro voltarão aos palcos pela primeira vez em dois anos, provavelmente com Pizzorno a acumular a liderança criativa com as vozes principais.


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