Berkeley é uma cidade a uns 20 km de São Francisco e pertence à chamada Bay Area.
Lá está localizado o mais antigo dos 10 campus da Universidade da Califórnia, fundado em 1868.
Quase um século depois, em 1964, a coisa fervia por lá, pois o ativismo político estudantil americano teve em Berkeley um de seus palcos principais. Por essa época, alguns meses após o assassinato do presidente John F. Kennedy e a imediata promoção do vice Lyndon Baines Johnson ao cargo mais importante da nação, o campus já era terreno fértil para jovens idealistas abraçarem a causa dos direitos civis e se posicionarem contrários à Guerra do Vietnã, que ganhara uma nova dimensão com a ascensão do novo presidente.
Aquilo que depois ficou conhecido como “Free Speech Movement” (Movimento pela Liberdade de Expressão) foi a primeira bandeira levantada por esses jovens, e surgiu em oposição a uma diretriz da Universidade que proibia atividades políticas dentro do campus.
Para deixar clara essa oposição, os estudantes primeiro organizaram um “sit-in” (um tipo manjado de protesto onde os manifestantes se recusam a abandonar o local até que suas exigências sejam satisfeitas) dentro do campus que durou 10 horas. Alguns dias mais tarde outra manifestação, desta vez muito mais contundente, aconteceu quando um estudante já graduado foi preso pela polícia do campus enquanto fazia panfletagem política dentro dos limites da universidade. Outro estudante chamado Mario Sávio revoltou-se com a prisão e pulou no teto do carro dos policiais, gritando palavras de ordem em favor da liberdade de expressão e liderando milhares de colegas que passaram a cercar o veículo, impedindo sua locomoção por 32 horas.
Como a administração da Universidade se recusava a relaxar sua decisão, novas manifestações foram organizadas pelos estudantes e o “Free Speech Movement” acabou expandindo seu alvo para além do campus, focando agora também as instituições governamentais e militares.
No dia 2 de dezembro de 1964, milhares de estudantes participaram de um novo “sit-in” no Berkeley Sproull Hall, com a participação da cantora folk Joan Baez. O saldo desta vez foi a prisão de Mario Sávio e de mais 782 universitários.
Se você, caro leitor, teve paciência para acompanhar este texto até aqui, deve estar se perguntando o que isso tudo tem a ver com a história de uma banda de rock. Bom, no caso específico do Country Joe & The Fish tem tudo a ver, pois foi nesse cenário explosivo que o grupo iniciou sua decolagem para o sucesso.
1964
Joe McDonald tinha 22 anos e era veterano da marinha (serviu por 3 anos) quando trocou o sul da Califórnia por Berkeley em 1964 para dar seqüência aos seus estudos. Logo, porém, viu-se mais atraído pelo ativismo estudantil do que pela dedicação aos livros. Junto ao amigo Ed Denson, que mais tarde se tornaria empresário do CJ&F, começou a publicar uma revista local chamada Rag Baby Magazine, onde expunha suas idéias políticas.
Como compositor era chegado à sátira e começou a circular pela cena folk que estava em pleno renascimento, Um belo dia teve a brilhante idéia de gravar um EP com 4 faixas e fazê-lo circular como o primeiro número falado (talking issue) da tal Rag Baby Magazine. No EP, duas faixas eram do jovem cantor folk Peter Krug e duas eram músicas suas para a recém formada dupla Country Joe & The Fish. Suas músicas eram Superbird, onde tirava um sarro do presidente Lindon Johnson, e a primeira versão de I-feel-like-I’m-fixin’-to-die Rag, um estrondoso libelo contra a Guerra do Vietnã. Esta primeira encarnação do CJ&F contava, além da dupla “Country Joe” McDonald e o guitarrista Barry “The Fish” Melton, com o acompanhamento de uma jug band que tinha Mike Beardslee nos vocais, Carl Schrager no washboard e Bob Steele no baixo.
O nome Country Joe & The Fish foi sugerido por Ed Denson. Country Joe era o apelido de Joseph Stalin na Segunda Guerra Mundial e “The Fish” referia-se a Mao Tse-Tung, que exigia que o exército revolucionário chinês nadasse “como um peixe” no mar do povo.
Quanto ao EP, um raríssimo objeto do desejo de qualquer colecionador, ele é hoje considerado o primeiro disco promocional de uma banda de rock e circulou em Berkeley no inverno de 1965 durante uma enorme manifestação estudantil de repúdio a Guerra do Vietnã. Uma rádio da cidade dedicada à música folk cansou de tocar o EP e McDonald e Melton acabaram sendo contratados pela SDS – Students for a Democratic Society, que estava organizando protestos por todos os campus do país. Viajando de busão, a dupla se apresentou na maioria das universidades da Costa Oeste.
De volta à Berkeley eles passaram a se apresentar numa cafeteria chamada Jabberwock e o som aos poucos foi sofrendo sua metamorfose psicodélica com a entrada de Paul Armstrong, Bruce Barthol, David Cohen e John Francis Gunning. Com esse som mais rock’n’roll eles eram considerados a banda mais quente da cidade e costumavam juntar até 100 pessoas por noite para ouvi-los na cafeteria, faturando 3 dólares por cabeça mais toda a comida que podiam assaltar da geladeira.
Em junho de 66 gravaram um segundo EP pela Rag Baby, desta vez com 3 faixas: (Thing Called) Love, Bass Strings e Section 43. Novamente atraíram as rádios locais e mereceram até mesmo uma menção na revista Billboard, chamando a atenção do lendário Bill Graham que contratou a banda para apresentações no Fillmore de São Francisco. Em 23 de outubro eles abriram para os Yardbirds e em 22 de dezembro para ninguém menos do que Otis Redding. Na noite de ano novo eles foram a atração principal no Avalon Ballroom, administrado pela Family Dog Productions.
Neste meio tempo, com as saídas de Armstrong e Gunning, o CJ&F encontra sua formação definitiva em McDonald e Melton, Bruce Barthol, David Cohen e Chicken Hirsh. É assim que o grupo assina com o selo Vanguard e assume a missão de, através do rock’n’roll, propagar suas aspirações políticas e sociais e mobilizar a maior oposição possível à guerra no Vietnã, que ganhava intensidade cada vez maior.
1967
O primeiro LP do grupo para o novo selo saiu em abril de 1967. “Electric Music For The Mind And Body” coloca uma definitiva roupagem psicodélica no antigo repertório do grupo e traz novas e fantásticas canções. É tido por muitos como o melhor disco a emergir da costa oeste americana na época, verdadeira obra prima.
Apesar de estrearem gravando por um grande selo e estarem virando figurinhas carimbadas no Fillmore e no Avalon Ballroom, dois templos da contracultura de São Francisco, o que catapultou o sucesso do Country Joe and The Fish foi sem dúvida sua participação no Festival de Monterey em junho de 1967, o primeiro grande festival da história do rock. No filme documentário sobre o festival eles são responsáveis por um de seus momentos mais lisérgicos.
Fechando o ano, a banda lança em novembro seu segundo disco, “I Feel Like I’m Fixin’ To Die”, resgatando a música título das sessões do primeiro LP e que não entrou no disco de estréia porque os chefões da Vanguard estavam temerosos das implicações políticas que a música continha. “Janis“, a faixa escolhida para ser trabalhada como single, é uma homenagem a Janis Joplin com quem Joe McDonald teve um curto e tórrido romance. Com este segundo disco, o CJ&F consolidava sua posição de porta voz de uma geração de jovens contrários aos horrores da guerra e da linha dura da política militar americana.
1968
Estamos agora em 1968, ano em que a banda acabou envolvida nos planos de uma maciça demonstração de protesto em Chicago comandada pela Youth International Party, cujos cabeças eram Abbie Hoffman e Jerry Rubin e cujos membros eram chamados de Yippies. Juntos com outras organizações ativistas, eles planejavam esse protesto para os dias 25 a 30 de agosto para coincidir com a Convenção Nacional do Partido Democrata que aconteceria no Chicago Hilton Hotel. Hoffman e Rubin queriam atrair milhares de manifestantes, reunindo-os no Park Grant de Chicago, numa celebração de paz e demonstrações contra a discriminação racial e a Guerra do Vietnã. Bandas ao vivo transformariam tudo num grande happening e o CJ&F foi convidado como atração principal.
A princípio tudo bem para a banda que inclusive tinha shows marcados na cidade poucos dias antes do protesto. O problema é que com o passar dos meses, a expectativa em torno desse acontecimento só foi aumentando seu potencial de violência. Joe começou a sentir que a coisa poderia sair do controle e se tornar muito perigosa e que eles estariam incentivando as pessoas a se machucarem. Temia até pela segurança da aparelhagem da banda caso as coisas desandassem. Depois de refletir muito a respeito, resolveu que a banda deveria cair fora.
As previsões de Joe se mostraram corretas uma vez que o prefeito de Chicago, reagindo a boatos de que os Yippies estariam planejando muitos atentados, entre eles derramar LSD nos sistemas de água da cidade, apelou para o governo federal, conseguindo deslocar mais de 25 mil policiais e soldados para proteger a cidade e, se necessário, agir contra os manifestantes.
Na data da convenção dos democratas, enquanto Aretha Franklin cantava o hino americano, 10 mil jovens transformavam o Park Grant numa bomba prestes a explodir. E o pavio foi aceso por um manifestante que resolveu subir num mastro e rasgar a bandeira americana. A polícia então agiu sem dó, investindo com bombas de gás lacrimogêneo e descendo porrada na multidão. Nem a imprensa que cobria a manifestação ao vivo escapou de apanhar. Aos olhos do mundo, o protesto dos Yippies mostrou que havia algo de muito podre na tão decantada democracia americana.
Nem o CJ&F, que não participou da manifestação, escapou ileso: Bruce Barthol, o baixista do grupo e talvez o membro mais comprometido com os ideais políticos da banda, descontente com a atitude dos demais de abortar o protesto, pediu as contas e mudou-se para a Inglaterra. O grupo havia acabado de lançar seu terceiro LP, “Together”, naquele mesmo mês de agosto e, não fosse pelas fotos da capa e do miolo do álbum, mostrando o casamento de Joe com Robin Mencken, o título seria extremamente irônico, uma vez que a banda estava cada vez mais desunida. Para Barthol, o CJ&F havia perdido o foco e se tornado mais um grupinho de rock atrás de fama e dinheiro.
Mesmo sendo um álbum menor se comparado aos dois primeiros, “Together” abria com a ótima Rock and Soul Music, o jeitinho mcdonaldiano de fundir Elvis Presley com James Brown, e que se tornaria uma das músicas favoritas da banda em suas performances ao vivo. “Waltzing In The Moonlight” era outro ponto alto do disco.
Inicialmente Bruce Barthol foi substituído por Mark Ryan que mais tarde integraria o Quicksilver Messenger Service. Jack Casady, o baixista do Jefferson Airplane, também andou emprestando suas quatro cordas ao grupo por essa época. Mas na cabeça de Joe, depois do fim do contrato com a Vanguard no final de 68 , as coisas andavam estranhas e ele não sabia como proceder, se renovava o contrato e continuava a banda ou se acabava de vez com ela. Até mesmo uma espécie de concerto de adeus teve lugar no Fillmore West em janeiro de 1969 (que saiu em CD em 1997). Foram 4 noites de apresentações memoráveis, apesar de ofuscadas pelo grupo de novatos que abria os shows, um tal de Led Zeppelin.
1969
Talvez coincidindo com o fato do 6 e do 9 serem símbolos numéricos inversos, 69 foi um ano de altos e baixos. Em julho saiu o quarto álbum da banda, “Here We Are Again”, mostrando que McDonald e Melton renovaram com a Vanguard e ainda apostavam numa sobrevida para a banda. No entanto, trata-se mais uma vez de um álbum irregular para os padrões iniciais do CJ&F, mesmo brindando os fãs com músicas do calibre de “Crystal Blues” e “Donovan’s Reef“. Para piorar, durante as gravações o restante do grupo foi debandando e sendo substituído por tapa buracos ilustres como Jack Casady e Peter Albin (Big Brother & The Holding Company) . O tecladista Mark Kapner, que toca em duas faixas do álbum, seria seu mais novo membro fixo.
O ápice da banda naquele ano (e em toda a sua carreira) foi a participação no Festival de Woodstock, em agosto. Joe e Barry foram convidados de última hora, como um dos substitutos dos vários grupos que desistiram do evento. A formação do CJ&F para o festival foi completada por Greg Dewey na bateria, Doug Metzner no baixo e Mark Kapner nos teclados e eles foram escalados para tocar no domingo, último dia do festival.
No primeiro dia, em meio a estradas congestionadas, mau tempo e meio milhão de almas superlotando o local, poucos artistas conseguiram chegar ao palco para sua apresentação. Uma mãozinha do destino, porém, fez com que Joe estivesse no backstage no final da apresentação de Richie Havens. Imediatamente um violão foi colocado em suas mãos e ele se viu frente ao microfone encarando toda aquela multidão. Depois de improvisar um set de quatro músicas, resolveu tocar “I Feel Like I’m Fixing To Die Rag“, que estava prevista para ser apresentada junto com o grupo.
Quando ele começou a provocar o público com o “gimmie an F… gimmie an U…gimmie an C… gimmie an K… what’s that spell?” o que se ouviu foi a estrondosa resposta de 500 mil vozes gritando “FUCK” a plenos pulmões. Foi a mais poderosa mensagem que a juventude americana poderia ter dado à política bélica americana, repercutindo no mundo todo graças ao disco e ao filme que documentaram o festival.
1970
O filme Woodstock foi para as telas na primavera de 1970. Alguns meses antes saia o quinto e último LP do Country Joe & The Fish, chamado “C.J. Fish”. Mas nem toda a valorização da imagem da banda graças ao festival serviu para mantê-la viva. O disco, mesmo com algumas boas músicas, tinha todo o jeitão de ser o último suspiro de uma banda tão representativa da contracultura dos anos 60 que acabou junto com ela na virada dos 70.
A partir daí Barry Melton deu um tempo da música para estudar biologia marítima e advocacia, voltando à cena musical só em 1974. Country Joe McDonald reassumiu suas raízes folk e gravou mais de uma dúzia de álbuns solos. Esporadicamente a banda ensaiava um retorno e acabou por gravar o álbum “Reunion” em 1978, mas o peixe já estava definitivamente morto.
Para finalizar vale o registro de dois álbuns lançados no começo dos anos 70. Um é a trilha sonora do filme Zachariah onde a última formação da banda interpretou uma gang de foras da lei chamada “The Crackers” e o outro é o disco duplo “The Life and Times of Country Joe & The Fish”, recheado de apresentações ao vivo do período 68/69. Nos créditos de algumas músicas aparece um certo Peregrine Pickle tocando baixo, ninguém menos do que Jack Casady.
Como o FISH virou FUCK
“I Feel Like I’m Fixin’ To Die Rag” é sem dúvida um dos maiores hinos da contracultura dos anos 60. A bem humorada introdução nos moldes do grito das cheerleaders para animar as torcidas nos jogos de futebol americano é sua marca registrada. No começo do CJ&F, os gritos de “gimmie an F… gimmie an I… gimmie an S… gimmie an H… what’s that spell?… FISH…” era apenas suficientemente inocente para conquistar a platéia e apresentar a banda.
No verão de 1968, porém, em um festival no Central Park de Nova Iorque, diante de um público de mais de 10 mil pessoas, o baterista Chicken Hirsh teve a idéia de mudar a introdução para formar a palavra FUCK ao invés do tradicional FISH. Imediatamente a imprensa mais conservadora caiu de pau, considerando o ato pernicioso para os bons costumes da juventude e um ultraje ao sistema americano. A verdade é que os jovens nunca quiseram saber as razões de tal mudança, eles simplesmente aderiram e a partir daí o FUCK na introdução da música passou a ser um grito de protesto e um recado aos governantes, principalmente em relação ao Vietnã.
O engraçado é que alguns executivos do Ed Sullivan Show estavam presentes nesse festival e ficaram estarrecidos. Poucos dias antes eles haviam assinado um contrato com o CJ&F para uma participação da banda nesse programa de elevada audiência na TV americana. Uma semana depois do show no Central Park, a banda recebeu um cheque do programa com todo o cachê combinado em contrato e a seguinte frase: “Fiquem com o dinheiro, mas, por favor, não compareçam ao programa”.
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