quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

Rui Reininho – 20.000 Éguas Submarinas (2021)

 

Regressa ao fim de vários anos de silêncio. Há muito que não o ouvíamos assim, em nome próprio, e dificilmente o reconhecemos agora, exposto desta forma tão aberta, tão pura, sobretudo se continuarmos a pensar nele como figura ímpar da história do nosso pop-rock. Seja bem-vindo, Rui Reininho, e bem-vindas sejam as suas novas avarias!

Basta que nos lembremos da faixa “Avarias”, tema que ocupava integralmente o lado B do primeiro longa duração dos imortais GNR. Quem a tiver presente saberá, e já lá vão muitas décadas, que a cabeça de Rui Reininho sempre foi dada a experimentalismos vários e a formulações inusitadas. No entanto, as obrigações da pop-rock orelhuda (e mais ou menos bem comportada) levaram-no a render-se a um formato que sempre dominou com enorme à vontade e com reconhecida mestria. Mas algum dia haveria de chegar a necessidade de romper (como já o fizera antes, embora poucos tivessem reparado), de dar um murro na mesa sempre tão bem posta, puxando o tapete por debaixo dos pés dos menos atentos. Algum dia teria de ser, mas de ser à séria! Aconteceu agora, por isso é bom perceber que aquilo que se ouve em 20.000 Éguas Submarinas talvez não seja coisa para se cantarolar como antes se fez sobre “pássaros estúpidos a esvoaçar”. Efectivamente, o que neste álbum se encontra é outra coisa: é a cabeça de um conhecido génio que arrisca construir (quiçá?) o que sempre terá desejado fazer.

20.000 Éguas Submarinas está destinado a ser um disco de culto. É o que nos parece. Nessa categoria, como bem sabemos, estão sempre discos que se amam ou se detestam. Nestas coisas, como em tantas outras, é melhor que não nos precipitemos, pelo que audições repetidas são aconselháveis, não vá corrermos o risco de juízos pouco ponderados. Este (quase) irreconhecível Rui Reininho trouxe consigo tropa pesada, desde logo Paulo Borges e Alexandre Soares (sim, esse mesmo, um dos fundadores dos GNR). Reininho, como já afirmou, está “em idade de experimentar”, pelo que o primeiro travo do disco alinha-nos com essa ideia de exercício como forma de se por à prova. Nisso, o líder do Grupo Novo Rock passa claramente no exame. Mais ainda, para que o sentido ensaístico não seja totalmente desgarrado do conhecimento que o público tem do artista em questão, há elementos facilmente identificadores, como alguns dos títulos escolhidos, assim como certos versos cantados. Nada poderia ser mais Rui Reininho do que os malabarismos lexicais e fonéticos a que nos foi sempre habituando. Ora repare-se, desde logo, no título do álbum, que brinca descaradamente com a famosa obra de Verne, mas também com a designação de temas como “Ressonância Magnífica”, “Namastea” ou “Tan Tan no Tibete”, por exemplo. Não são necessárias quaisquer explicações, pois não?

Afora tudo isto, o que verdadeiramente se ouve nas doze faixas do álbum é um misto de música experimental, de paisagens sonoras que poderiam pertencer a um filme apenas passado na cabeça de quem o criou, de vanguardismo (“Hidrofone” é um bom exemplo disso), mas também de temas mais melodiosos como “Palmas”, e de outros com algum cheirinho a kraut (a parte instrumental de “Namastea” lembra Harmonia, por exemplo, assim como algumas criações ambientais fazem pensar no álbum homónimo dos Cluster (1971). Todos os ruídos que aqui ouvimos fazem parte da cabeça (des)organizada de Reininho, e já era tempo de os libertar. E, a par das influências referidas que vamos descobrindo a cada audição, uma haverá maior do que todas as outras, a de Scott Walker de The Drift (2006) e de Bish Bosch (2012). 20.000 Éguas Submarinas é um disco que aponta para a frente, mas que não deixa de olhar, simultaneamente, para o retrovisor, para o tempo dos Anar Band, embora seja provável que poucos se lembrem da existência dessa dupla composta por Jorge Lima Barreto e Rui Reininho. Agora como antes, inclassificáveis.

Rui Reininho é um dos nossos grandes heróis. E, ao contrário do célebre verso de Reinaldo Ferreira, este herói serve-se vivo! Bem vivo, felizmente. Abrir-lhe as portas para uma saborosa percepção é um dever nosso. Não se esquive a isso. Não tenha medo. Dê um passo em frente e vá até ao fim. Será um excelente mergulho no aparente vazio repleto de múltiplas e profundas riquezas.



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