O segundo álbum dos Black Flag rasga o livro de regras do punk hardcore que os próprios haviam escrito: lento, pesado e sombrio, dormindo com o inimigo, o doom metal. Só os gritos de raiva e frustração mantêm o ADN original.
No final dos anos 70 surgiu na América uma versão extremada do punk – mais rápida, mais selvagem, mais violenta – a que se convencionou chamar hardcore. Se os Bad Brains, os Minor Threat e os Dead Kennedys são referências incontornáveis, é justo destacar os Black Flag sobre os demais, quanto mais não seja pela sua incansável ética de trabalho DIY, fundando a editora independente SST, espalhando a mensagem com flyers irreverentes, palmilhando a América de lés-a-lés numa carrinha, arrancando a ferros praticamente do zero um circuito de concertos underground, passando fome, dormindo no chão, levando porrada da polícia, levando porrada dos fãs, resistindo a todas estas provações com um estoicismo quase monástico, tudo em nome desse nobre ideal chamado… sobreviver.
Se muitos preferem o primeiro álbum pela sua ortodoxia hardcore, nós temos um carinho especial pelo tomo seguinte. O guitarrista Greg Ginn – fundador e líder dos Black Flag – decidiu reinventar radicalmente a estética da banda, trocando o imediatismo e velocidade de Damaged pela lentidão sombria de My War, cujos compassos estranhos, guinadas nos tempos e anti-solos atonais estão mais próximos do avant-garde do que propriamente do punk. O lado A, apesar da blasfémia dos riffs de doom metal, tem, ainda assim, uma velocidade mínima garantida. Já o vagaroso lado B – definhando, agonizante, como uma baleia encalhada no areal – é de tal modo contrário à sensibilidade hardcore que desperta a ira de muitos punks. O facto de a malta dos Black Flag ter deixado crescer o cabelo, como se fossem malditos hippies – a tragédia! o horror! – agrava o teor da infâmia. Era imperioso castigar os traidores, arremessando-lhes garrafas partidas durante os concertos ou simplesmente furando-lhes os pneus da carrinha. Ser punk é isso: abertura de espírito, liberdade.
Ao aliar a lentidão pesada dos Black Sabbath com os gritos selvagens do hardcore, os Black Flag foram pioneiros do chamado sludge metal, abrindo o caminho não só para bandas como os Melvins e os Corrosion of Conformity, como também para o próprio grunge (a primeira banda que Cobain viu ao vivo foi justamente os Black Flag em ’84, sendo a sua influência notória em Bleach, primeiro disco dos Nirvana). E não falamos apenas da legitimação dos tempos arrastados (o que nós em musicologia chamamos de afinal-não-és-pussy-se-tocares-devagar) mas da própria sensibilidade atormentada que define o grunge: os gritos lancinantes de Henry Rollins em My War – elevando a angústia, raiva e frustração para níveis sem precedentes de devastação emocional – formam toda uma geração de grungers suicidas. A América de Reagan era de uma sorridente bonomia para os encaixados mas de uma brutal crueldade para os escorraçados. A paranóia e violência de My War capta na perfeição o lado mais sombrio do reaganismo.
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