terça-feira, 21 de março de 2023

“Ideologia” (PolyGram, 1988), Cazuza



O ano de 1987 parecia ser bastante promissor para Cazuza, que mostrava-se bastante empolgado. E não era pra menos, afinal, tinha completa a liberdade criativa desejada -  conquistada depois de ter deixado o Barão Vermelho em 1985 - e a sua carreira solo estava deslanchando. Cazuza estava de gravadora nova, havia trocado a Som Livre pela gigante PolyGram (hoje Universal Music), e através dela, lançou em março daquele ano o seu segundo álbum solo, Só Se For A Dois, que emplacou sucessos como “Só Se For A Dois” e “O Nosso Amor A Gente Inventa”. 

Porém, em abril de 1987, quando já preparava para a turnê de divulgação do álbum Só Se For A Dois, uma desconfiança que pairava sobre a cabeça de Cazuza se confirmou: ele foi diagnosticado com HIV, o vírus da AIDS. Viajou para Boston, nos Estados Unidos para começar os primeiro tratamentos contra o vírus. De volta ao Brasil, Cazuza iniciou a turnê de Só Se For A Dois, mas sem revelar para a imprensa e para o público a sua doença. No entanto, algo intrigava: Cazuza emagrecia a olhos vistos, seus cabelos estavam mais ralos e lisos.

Cazuza em 1987: época do Só Se For A Dois.
Com Só Se For A Dois indo bem comercialmente, em outubro de 1987, Cazuza já estava preparando repertório para um terceiro álbum, gravando fitas demo num estúdio de oito canais do baixista e produtor Nilo Romero, músico de sua banda. Só que num dado momento, Cazuza foi internado na Clínica São Vicente, no Rio de Janeiro por causa de pneumonia provocada pela AIDS. Com o apoio da família, Cazuza viajou novamente para Boston, nos Estados Unidos, onde se internou no New England Hospital.  As gravações do novo álbum que estavam previstas para começar no dia 15 de outubro, foram suspensas. Seu real estado de saúde continuava um mistério para o grande público, apesar dos boatos de que ele estaria com AIDS.

Dois meses depois, Cazuza estava de volta ao Brasil, e logo retomou a produção do novo álbum, e que já tinha conceito e nome, Ideologia. As gravações começaram em dezembro de 1987, com produção dividida entre Ezequiel Neves, Nilo Romero e o próprio Cazuza. A doença parecia ter deixado o artista mais focado no trabalho e mais questionador, o que iria se refletir nas letras das suas canções a partir de então. Provavelmente, Cazuza percebia a brevidade de sua vida, mas que precisava vivê-la e expressar tudo aquilo que necessitava dizer no pouco tempo que poderia lhe restar. 

Ideologia apresenta um Cazuza muito mais maduro como compositor. Ele parecia abrir mão do roqueiro “vida louca” e maldito, persona que ele encarnou desde os tempos do Barão até o começo da carreira solo para se tornar um artista mais maduro e reflexivo. O álbum mostra também um artista mais próximo da MPB, o que já se manifestava no álbum Só Se For A Dois. Ainda assim, a veia roqueira de Cazuza continua intacta. O texto forte e politizado em algumas canções como a faixa-título e “Brasil”, mostram que Cazuza estava muito atento à realidade brasileira daquele final de anos 1980, quando o Brasil vivia uma grande recessão, inflação alta, desemprego, e um governo desastroso do presidente José Sarney.

O desencanto com um Brasil recém-saído de 20 anos de ditadura, e que mergulhara numa crise socioeconômica havia, tomado conta de todos. Tal situação não havia passado despercebido pelos astros do rock brasileiro da época. Todos eles de alguma forma, manifestaram as suas insatisfações e desilusões com o quadro social e econômico do Brasil daquele final de 1987. Quando Cazuza retornou ao Brasil naquele momento, encontrou os seus colegas de cena roqueira brasileira expressando todas as suas insatisfações com o país através dos discos que haviam lançado. Em Jesus Não Tem Dentes No País Dos Banguelas, os Titãs destilavam sua fúria com “Lugar Nenhum” e “Desordem”. O Camisa de Vênus debochava da crise econômica brasileira com “País do Futuro”, do seu álbum Duplo Sentido. A Legião Urbana causou impacto com “Que País É Este”, faixa do álbum homônimo e que era um verdadeiro soco na boca do estômago em forma de música.

Esse quadro musical provavelmente tenha sensibilizado e inspirado Cazuza de alguma forma e canalizado a sua natural inquietude para temas mais questionadores para compor canções como “Ideologia” e “Brasil”.

Brasil pós-ditadura: frustração e desencanto na Era Sarney.

E é justamente a faixa-título quem abre o álbum, ou melhor, “põe o pé na porta”. “Ideologia” apresenta um Cazuza desiludido com o Brasil político pós-ditadura, mas buscando algo novo em que acreditar (“Meus heróis / Morreram de overdose / Meus inimigos / Estão no poder / Ideologia! / Eu quero uma pra viver”). Ao mesmo tempo Cazuza é confessional quanto à sua saúde (“O meu prazer / Agora é risco de vida / Meu sex and drugs / Não tem nenhum rock 'n' roll”).

“Boas Novas” mostra Cazuza mais uma vez falando da sua doença, mas de uma maneira irônica e mórbida: “Senhoras e senhores / Trago boas novas / Eu vi a cara da morte / E ela estava viva”.  Em “O Assassinato da Flor”, Cazuza afirma que uma flor colhida e presenteada a alguém que se ama, é uma flor assassinada por amor. A curiosa “Orelha de Eurídice” é sobre uma alma de uma morta que vem do além para trazer a sua orelha e entregar ao seu amado como prova de amor.

“Guerra Civil”, parceria de Cazuza e Ritchie, é o único cover do álbum. Havia sido gravada antes por Ritchie no seu álbum Loucura E Mágica, de 1987, porém com alterações na letra. Ao contrário de Cazuza, Ritchie não teria ficado à vontade em cantar os versos como “Freiras lésbicas assassinas / Fadas sensuais / Me vigiam do décimo andar”.

“Brasil” é uma das faixas mais fortes do álbum, onde Cazuza retrata um país desprovido de ética (“Não me convidaram / Pra esta festa pobre / Que os homens armaram / Pra me convencer / A pagar sem ver / Toda essa droga / Que já vem malhada / Antes de eu nascer”), ao mesmo tempo, se mostra ainda fiel a ele (“Grande pátria desimportante / Em nenhum instante eu vou te trair / Não, não vou te trair”) e berra toda a sua revolta num dos refrões mais marcantes do rock brasileiro: “Brasil! / Mostra a tua cara / Quero ver quem paga / Pra gente ficar assim / Brasil! / Qual é o teu negócio? / O nome do teu sócio? / Confia em mim”.

Detalhe da contracapa do álbum Ideologia.

Na versão LP, "Um Trem Para As Estrelas” é a faixa que abre o lado B. A canção, composta para o filme de mesmo nome, sob direção de Cacá Diegues, de 1987, é uma parceria de Cazuza com Gilberto Gil, uma demonstração de que a aproximação do ex-vocal do Barão Vermelho com a MPB era um caminho sem volta. “Vida Fácil” teria sido composta na época em que Cazuza integrava o Barão Vermelho, e fala daquele tipo de pessoa abastada e esbanjadora, que vive rodeada de bajuladores que desfrutam do conforto e dos prazeres que ela pode proporcionar.

 “Blues da Piedade” é uma espécie de “oração” em forma de blues contra a mesquinharia e a mediocridade: “Vamos pedir piedade / Senhor, piedade / Pra essa gente careta e covarde / Vamos pedir piedade / Senhor, piedade / Lhes dê grandeza e um pouco de coragem”.  Em “Obrigado (Por Ter Se Mandado)”, Cazuza fala sobre fim de romance de uma maneira bastante irônica. O saxofone de Zé Luíz dá um toque de elegância à romântica “Minha Flor, Meu Bebê”, que fala da entrega total no amor sem se preocupar em receber nada em troca: “Dizem que tô louco / Por te querer assim / Por pedir tão pouco / E me dar por feliz / Em perder noites de sono / Só pra te ver dormir / E me fingir de burro / Pra você sobressair”.

O romantismo prossegue em “Faz Parte do Meu Show”, faixa que fecha com chave de ouro o álbum. Composta por Renato Ladeira e Cazuza, a canção foi gravada antes em 1986 pela Herva Doce, banda da qual Ladeira era vocalista. A versão do Herva Doce era um rock balada, mas teve uma repercussão modestíssima. Com Cazuza, a canção virou uma bossa-nova, com arranjos de cordas bem elaborados e um violão ao estilo João Gilberto.

Taumaturgo Ferreira e Guilherme Fontes em cena do filme Um Trem Para As Estrelas.

Terceiro álbum de estúdio de Cazuza, Ideologia foi lançado em abril de 1988. O álbum já chegou causando polêmica através da capa, de autoria da dupla de artistas plásticos cariocas Jorge Barrão e Luiz Zerbini, mostrando uma mistura de símbolos do Capitalismo, Comunismo, Cristianismo, Judaísmo, Anarquismo, Taoismo,  Contracultura e até do Nazismo.

Polêmicas à parte, o álbum agradou o público e a crítica. “Ideologia”, “Brasil” e “Faz Parte do Meu Show”, se tornaram as faixas mais populares do álbum. “Brasil” ganhou uma versão de Gal Costa para servir de tema de abertura da novela Vale Tudo, da Rede Globo, em 1988. A trilha sonora de Vale Tudo incluiria outra canção de Ideologia, “Faz Parte do Meu Show”, mas que ao contrário de “Brasil”, foi incluída a versão original na voz de Cazuza. Outras faixas também viraram hits como “Boas Novas”, “Minha Flor, Meu Bebê” e “Vida Fácil”, esta última incluída na trilha sonora da novela Fera Radical, da Rede Globo,  em 1988.

O lançamento do álbum foi seguido de uma turnê por todo o Brasil, com uma elogiosa direção de Ney Matogrosso. Em outubro de 1988, os shows dos dias 14, 15 e 16 no Canecão, no Rio de Janeiro, foram gravados ao vivo para o álbum O Tempo Não Para, lançado em janeiro de 1989. O álbum gravado ao vivo seria a consagração de Cazuza e transcenderia o cantor além das fronteiras do rock, figurando-o entre os grandes nomes da MPB.

Cazuza durante a turnê de Ideologia que gerou o álbum gravado ao vivo O Tempo Não Para.

No começo de 1989, Cazuza assumiu publicamente que era soropositivo. Em fevereiro daquele ano, ele foi premiado em duas categorias do Prêmio Sharp: “Melhor Canção” (por “Brasil”) e “Melhor Álbum” (por Ideologia). Cazuza compareceu à cerimonia de premiação conduzido numa cadeira de rodas, sensibilizando a todos os presentes ao evento.

O ano de 1989 ainda veria um Cazuza presente nas paradas por causa do sucesso comercial do álbum gravado ao vivo O Tempo Não Para, e ao mesmo tempo, cada vez mais magro, porém lutando pela vida. Chegou a lançar mais um álbum, desta vez duplo, Burguesia, para o qual ele fez um enorme esforço para gravar ante a sua fragilidade física cada vez maior devido à doença. 

Em 07 de julho de 1990, Cazuza morreu aos 32 anos, vitimado por um choque séptico causado pela AIDS. De astro do rock fã das canções “dor de cotovelo” de Lupicínio Rodriugues, Cazuza virava um mito da música popular brasileira.

Faixas

Lado A
  1.  “Ideologia” (Roberto Frejat - Cazuza)
  2. “Boas Novas” (Cazuza)
  3. “O Assassinato da Flor” (Cazuza)
  4. “A Orelha De Eurídice” (Cazuza)
  5. “Guerra Civil” (Ritchie - Cazuza)
  6. “Brasil” (Cazuza - George Israel - Nilo Romero)
Lado B
  1. “Um Trem Para As Estrelas” (Cazuza - Gilberto Gil)
  2. “Vida Fácil” (Roberto Frejat - Cazuza)
  3. “Blues da Piedade” (Roberto Frejat - Cazuza)
  4. “Obrigado (Por Ter Se Mandado)” (Zé Luis - Cazuza)
  5. “Minha Flor, Meu Bebê” (Dé - Cazuza)
  6. “Faz Parte do Meu Show” (Renato Ladeira - Cazuza)


Vídeo-clipe de "Faz Parte do Meu Show", 
programa Fantástico, TV Globo, 1988.


Sem comentários:

Enviar um comentário

Destaque

Horacee Arnold - 1973 [2011] "Tribe"

  Arnold começou a tocar bateria em 1957 em Los Angeles, enquanto estava na Guarda Costeira dos Estados Unidos. Em 1959, ele começou a se ap...