terça-feira, 21 de março de 2023

slowthai – TYRON (2021)


O novo trabalho de slowthai apresenta uma evolução criativa. Sim, evolução – e não transformação porque o (british) punk de Nothing Great About Britain continua a andar às voltas no mic de Tyron e está bem presente no segundo LP do lad de Northampton.

A cultura em Inglaterra funciona de forma diferente. Claro, todas as culturas são distintas. Por isso, obedecem a princípios próprios e produzem cenários únicos. No meio deste processo, os fenómenos culturais britânicos apresentam uma força especial, que é raramente identificada noutros contextos e praticada por outros agentes. O facto de Inglaterra tratar-se de uma ilha ajuda a explicar este fenómeno, mas não clarifica, naturalmente, todos os aspetos. A partir do fim da Segunda Guerra Mundial, os portos ingleses começaram a ‘receber’ pessoas de todo o mundo (de todo o ‘império’, na verdade): primeiro umas centenas, depois uns milhares, e, por fim, uns milhões. No interior das malas, as pessoas traziam objetivos de vida, sonhos e cultura também. Dentro da cultura, estes agentes escondiam letras, sons, ritmos e batidas: música. Tal como as pessoas externas à realidade cinzenta e industrial inglesa, entre subculturas, a música integrou-se na sociedade britânica e, em poucas décadas, deu espaço a que géneros como o reggae, o ska e o punk nascessem; e deu a rastafáris, punks (justamente), hipsters e teddy boys a possibilidade de praticarem e viverem esses novos géneros – autênticas novas formas de estar numa sociedade já ‘controlada’ por Isabel II.

A pop culture britânica constitui um tema verdadeiramente entusiasmante. Há uma série de ferramentas que nos ajudam a estudá-lo e observá-lo. Aquele que mais vezes me tem auxiliado é o British Culture Archive (um banco de fotografias que documenta as vivências dos jovens britânicos entre as décadas de 50 e os tempos contemporâneos). O cinema também é nosso amigo. (No fundo, todas as alturas são boas para rever Trainspotting, por exemplo.) No entanto, é o universo da música que mais nos interessa para este efeito. Não há forma de resumir, nem de abordar os fenómenos musicais britânicos: é uma tarefa demasiado extensa, complexa (… e criativa e divertida também). É mais ou menos consensual que é naquele território que a música – pop (a que verdadeiramente move pessoas e influencia vidas e modas em sociedade) – tem florescido com mais intensidade, ainda que a Música seja uma ocorrência global e intemporal, e que a globalização (e os novos media) tenha dado oportunidade a todos os agentes para partilharem produções artísticas.

O British Culture Archive é um banco de fotografias que documenta as vivências dos jovens britânicos entre as décadas de 50 e os tempos contemporâneos.

Ainda pintado de fresco, TYRON é o mais recente trabalho do rapper britânico slowthai, uma das personagens mais carismáticas do atual hip-hop brit e de toda a pop culture inglesa. Depois de meses de espera, durante os quais o artista foi dando a conhecer o trabalho através de singles, o álbum está finalmente disponível. Apesar de ter apenas uma semana de vida, TYRON já é um sucesso. O novo álbum de slowthai é o encontro perfeito das tradicionais práticas grime, a que nos habituou desde o começo, com novos elementos – reconhecidos agora com mais força e evidência na musicalidade do rapper.

No imaginário de slowthai, a artwork dos LP’s revela informações importantes acerca da ideia criativa condutora. Em Nothing Great About Britain (2019), identificávamos slowthai imobilizado num instrumento coercivo medieval, numa possível referência ao efeito ‘prisão’ que os aspetos negativos de Inglaterra constituem na experiência do músico. Na capa, é também difícil não reparar no prédio que está por detrás do rapper e nas pessoas que estão de pé em varandas decoradas com Union Jack’s (a classe média inglesa não mora propriamente em palácios detidos pela Coroa). Desta vez, em TYRON, reconhecemos novamente slowthai, que agora se encontra por debaixo de uma macieira, quase morto, com uma seta espetada no olho. O elemento visual em TYRON tem uma razão de ser e foi, aliás, partilhada pelo próprio numa conversa com Anthony Fontano, no início do mês – é uma referência à história popular de William Tell, que disparou uma seta contra uma maçã colocada na cabeça do seu filho. Mas se na lenda folk a ação correu bem, na capa de TYRON o desfecho é outro: slowthai está ferido, encostado à macieira, sem forças para se levantar. Se não está morto, parece. A partir do momento em começamos a ouvir as faixas deste projeto de trás para a frente, e assim que nos apercebemos do contexto em que ‘Thai as produziu, uma parte dos nossos sentidos começa a considerar a hipótese de ter sido o slowthai a disparar a seta contra si próprio.

A verdade é que nós conhecemos a sua irresponsabilidade. E, de certa forma, compreendemo-la porque reconhecemos que é o motor da obra do rapper. Sabemos que ele não é perfeito e, nos últimos tempos, ficamos a saber que Tyron também reconhece que não é exemplo para ninguém. Porque as capas também podem fazer parte dos álbuns, senti que era necessário fazer uma referência à arte visual de TYRON, de modo a concluir que, tal como em Nothing Good About Britain, a estética é crucial para contar as histórias que se escondem por detrás de beats agressivos e de um british accent por vezes irreconhecível.

Se o primeiro LP de Slowthai versou sobre questões sociopolíticas inglesas, TYRON corresponde a um olhar interior. Neste segundo trabalho, ‘Thai olha primeiro para si e apenas depois para a comunidade. Desta vez, não realizou comentários tão diretos relativamente a personalidades políticas (Boris Johnson em “Doorman”) ou a sítios reais da sua existência partilhada com uma população operária, que tem no football a maior paixão (Northampton em “Gorgeous”). TYRON, tal como o nome indica, é sobre Tyron: sobre quem é realmente Slowthai quando não tem um microfone na mão e está trancado em casa, a lutar contra adições de todo o tipo (drogas maioritariamente). Mas, ainda que o discurso esteja agora focado em si, Slowthai continua a ser um símbolo de uma geração – da sua geração – e a falar pelos outros. De certa forma, a porta que abriu ao lado mais pessoal fez com que a sua personalidade e vida ganhassem ainda mais força na mente e nos ouvidos de quem o escolhe escutar.

As primeiras reações a TYRON têm sido muito positivas. Nada que possa surpreender, na verdade. Apenas os mais desatentos podem ficar surpreendidos com esta ‘nova’ abordagem criativa do rapper. O que é facto é que o lançamento de TYRON estava a gerar muitas expetativas.  Há 5 meses, quando lançou “feel away” (com os técnicos Mount Kimbie e o romântico James Blake), Slowthai deixou água nas bocas de toda a gente. Esta faixa, que integra a penúltima posição de TYRON, é verdadeiramente “a” produção do projeto e prova que o rapper, tal como a maioria dos rappers, é mais do que um mero rapper. Apesar de ter existido desde sempre, agora e mais do que nunca, há música em Slowthai. Há sentimentos (“feel away” aborda a morte prematura do irmão de Tyron, que perdeu a vida ainda em bebé). Há pop. E há baladas (vale a pena escutar “push”, com a ajuda dream-bed-pop de Deb Never).

O ponto forte de TYRON é esse. O novo trabalho de ‘Thai apresenta uma evolução criativa. Sim, evolução – e não transformação porque o (british) punk de Nothing Great About Britain continua a andar às voltas no mic de Tyron e está bem presente no segundo LP do puto de Northampton. Esta é altura perfeita para analisar um aspeto muito importante de TYRON – a organização dos temas. Se a primeira parte do projeto guarda composições agressivas, a segunda oferece precisamente criações opostas. Se as músicas do disco um têm títulos escritos em CAPS LOCK, as do segundo disco apresentam caracteres todos em minúsculo. Os pormenores contam e, para artistas tão criativos como Slowthai, os pormenores são as partes mais importantes do processo criativo.

As primeiras reações a TYRON têm sido muito positivas.

A primeira parte de TYRON é o que quiserem, na verdade. São temas e conjuntos de temas agressivos, tipicamente pensados por Slowthai. Há momentos óbvios de grime (“CANCELLED” com Skepta) ou trap (“VEX”), mas é igualmente certo que, em comparação com o trabalho anterior do inglês, mesmo nos temas mais acelerados, há momentos mais melódicos. Em “MAZZA”, que conta com a participação Rocky, os primeiros segundos são marcados pela presença de um sintetizador (será?), que conduz os restantes momentos da canção. Em “MAZZA”, nota-se claramente o toque do rapper norte-americano – podia fazer parte de Testing (2017). Depois, em “PLAY WITH FIRE, e ainda na dita primeira parte de TYRON, sentimos a mesma coisa… a mesma Melodia. Esta acaba por ser uma das faixas mais fortes do projeto, porque é justamente um tema de “fronteira” entre o lado agressivo de ‘Thai e o calmo e contemplativo que mostrar nas sete faixas seguintes.

Não há bem palavras para descrever o que Slowthai atingiu na segunda parte de TYRON. É sempre especial quando um artista se abre e expõe as suas confissões mais negras (“i tried” fala sobre vidas destruídas, drogas e suicídio), ou partilha agradecimentos a agentes importantes da sociedade (“nhs” é uma homenagem aos profissionais do Sistema Nacional de Saúde britânico). É que TYRON foi parcialmente pensado durante o período de confinamento provocado pela pandemia de Covid-19, tendo sido editado numa altura em que o mundo, as pessoas e o normal funcionamento das sociedades continuam abalados.

Slowthai rima com polémica e irresponsabilidade. Mas, a partir desta fase, começou a rimar com verdade e transparência. O artista não tem medo de nada e é por isso que, demasiadas vezes, não pensa nas consequências dos seus atos. Estamos a falar de um músico que, em incontáveis concertos, já mandou o primeiro-ministro do seu país ‘dar uma volta’. Há num certo romantismo aí, não há? E parece que já vimos este filme há uns tempos, quando um grupo de miúdos de olhos pintados teimava em desobedecer à Rainha e ao chá das cinco, numa Londres a preto e branco e movida a suspiros de working class heroes.

Em TYRON, Slowthai volta a partilhar com as pessoas as suas visões do mundo. Mas, desta vez, escolheu falar do ‘seu’ mundo. Dessa forma, chegou às pessoas que o escutam desde sempre e aos ouvidos que o escutaram pela primeira vez. Inglaterra continua a ter muitos problemas. E slowthai também. Mas nem todos os problemas são necessariamente maus. Muitas vezes, estas questões revelam oportunidades perfeitas para a partilha da verdade, de confissões, medos, segredos e amor pela vida. Foi precisamente o que Tyron fez em TYRON.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Destaque

Duke Robillard Band feat. John Hammond LIVE The Zephyr, SLC, Utah 1996-04-02

  LIVE The Zephyr,  SLC, Utah 1996-04-02   Duke Robillard - guitar, vocals Gordon Beedle - sax Marty Ballou - bass Marty Richard - drums Joh...