Ace of Spades, dos Motörhead, é sujo, rápido e perigoso. Como uma mota a derrapar no óleo da estrada.
Lemmy sempre recusou o rótulo de heavy metal mas em 1980 não havia banda mais pesada no mundo. Não tanto pela velocidade avassaladora de Ace of Spades – Judas Priest, Saxon e Iron Maiden também sabiam ser rápidos quando queriam- mas sobretudo pela sua brutal ferocidade: sujos e ruidosos como tubos de escape estragados. É preciso relembrar que o metal do final dos anos 70 tendia a ser kitsch e operático, nas antípodas do selvático punk. São os Motörhead que trazem pela primeira vez uma sensibilidade apunkalhada para o género, tornando-o mais cru e visceral. O caminho para a chegada do thrash fora aberto. Agora, sim, punks e metaleiros podiam ir aos mesmos concertos. Se o faziam sem acabar à pancada isso já é outra conversa…
Ainda assim, Lemmy tem razão: na sua essência, os Motörhead são uma banda de rock’n’roll. Porque têm blues e gasolina no peito. Porque o seu imaginário de sexo-speeds-e-alcatrão não anda muito longe da rebeldia rockabilly original. Porque as gavetas e gavetinhas dos subgéneros não poderão nunca separar o que o Diabo um dia uniu. Além disso, Lemmy esteve lá desde o início. Ouviu Elvis na rádio nos fifties. Viu os Beatles no Cavern Club nos sixties. Foi baixista dos Hawkwind nos seventies. Onde nós vemos saltos intransponíveis Lemmy vê continuidades: os decibéis no vermelho dos Motörhead como o inevitável corolário dos gritos selvagens de Little Richard.

Ace of Spades rivaliza com Overkill na condição de melhor álbum dos Motörhead: o segundo talvez ganhando nas canções, o primeiro esmagando na energia frenética. O mesmo power trio está ao leme: Lemmy no baixo e na voz, “Fast” Eddie Clarke na guitarra hiperactiva, “Philthy Animal” na avassaladora bateria (a mítica formação clássica dos Motörhead, portanto). A voz de Lemmy tem uma inconfundível rouquidão, metade tempestade de areia, metade dois marlboros por dia. O baixo distorcido, tocado como uma guitarra-ritmo, corta cabeças com o seu gume afiado. A guitarra é rápida e tagarelas como um cérebro em anfetaminas. O duplo bombo tonitruante – thrash antes do thrash – parece uma manada de bisontes a correr no andar de cima. A ordem é matar tudo: prisioneiros, mulheres, crianças…
Ace of Spades tem o romantismo dos fora-da-lei, a malícia dos malandros, a gravilha dos atalhos. É rude e insolente mas por debaixo das nódoas de Jack Daniel’s há um gentil cavalheirismo. É devasso e perigoso: se acenderes um fósforo perto das colunas é provável que a sala vá pelos ares. A sua rebeldia não serve nenhuma causa, é um fim em si mesmo, uma raiva difusa contra tudo e contra todos. A sua ética é o prazer, a sua religião a liberdade. Um dia sairá o ás de espadas. E daí? Para quem escolheu o lugar de fora perder sempre foi a única lei.
Sem comentários:
Enviar um comentário