A soul acontece quando uma alma transborda. Dusty In Memphis é um extravasante dilúvio.
A voz de Dusty in Memphis foi gravada em… Nova Iorque. O medo de falhar em frente aos Memphis Cats (a mítica secção rítmica de Wilson Pickett e Aretha Franklin) paralisou Springfield, sentindo que nunca estaria à altura de todos estes gigantes. Só mais tarde, sozinha numa cabine em Nova Iorque, o milagre da sua voz aconteceu.
Toda a mudança para a Atlantic Records – com a sua premissa de abraçar um R&B mais negro e visceral – intimidou Dusty, sentindo que era demasiada areia para a sua camioneta. Não era. Até porque Springfield nunca precisou de imitar os seus ídolos. O seu estilo sempre foi pessoal e intransmissível, e se neste disco Dusty se transcende isso deve-se ao elevar da fasquia de todo o projecto. Veja-se o caso da qualidade das canções, escritas por alguns dos mais talentosos songwriters da sua geração: Carole King, Randy Newman, Burt Bacharach…
Desengane-se, portanto, quem acha que vai encontrar aqui uma Aretha Franklin de pele clara ou qualquer outro lugar comum do género. Dusty in Memphis deve tanto à soul da América como à pop de Inglaterra. Se o groove da secção rítmica e do trio de sopros – bem como o coro gospel das The Sweet Inspirations – nos remete, de facto, para a rudeza do southern soul, a exuberância das orquestrações e o seu sentido de drama já são tipicamente europeus (por vezes, piscando o olho à própria chanson française, como na pomposa “The Windmills of Your Mind”).
Mas se entendermos soul simplesmente enquanto expressão intensa do que nos vai na alma, todas as ambiguidades desaparecem: Dusty é uma cantora de soul da cabeça aos pés, das melhores que o mundo nos deu. Ao contrário das Célines Dions desta vida – que, histéricas e exibicionistas, cantam sempre no limite -, Dusty é de uma subtileza ímpar, contida quando as palavras pedem contenção, e só extravasando quando há uma razão. A paleta de emoções é vasta: dor, desejo, vulnerabilidade, êxtase, solidão, às vezes todas ao mesmo tempo. A palavra-chave é honestidade: acreditamos sempre na sua voz e, por isso, nos comovemos tanto.
O single “Son of a Preacher Man” – repescado por Tarantino em Pulp Fiction – foi um sucesso em ambos os lados do Atlântico. Mas quando o álbum finalmente chegou às lojas, foi recebido com uma brutal indiferença. No ano em que aconteceu o lamacento Woodstock, o glamour de Dusty era visto como anacrónico. Só a passagem do tempo lhe fez finalmente justiça. A verdade estética pode demorar mas acaba sempre por vir ao de cima.
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