sexta-feira, 11 de agosto de 2023

Pop Dell’Arte – Transgressio Global (2020)


 

Ao quinto disco, os Pop Dell’Arte fazem um apelo: desobedeçam, desobedeçam sempre, porque só desobedecendo o mundo gira e avança.

Houve um tempo, na segunda metade dos anos 80, em que os Pop Dell’Arte estavam no centro de uma movida alternativa, congregando à sua volta todos os gostos subterrâneos. Era uma época saudosa em que o público mais conservador se escandalizava com a loucura do seu experimentalismo e os fãs erguiam a sua dissidência bem alto como um orgulhoso porta-estandarte. Mas algures nos anos 90, por vicissitudes várias, a banda desintegra-se, entrando num longo limbo de inactividade.

Quando em 2010 regressam com o bonito Contra Mundum, já não pertencem a nenhum tempo, nem a nenhum lugar; são um fantasma, uma doce aparição. E é nessa qualidade de pura e intangível beleza que agora retornam em Transgressio Global.

São mais de duas dezenas de canções que agora nos trazem, uma generosidade sem precedentes. O que sempre esteve subentendido desde Querelle (1986), dizem-nos agoras com letras a negrito: desobedeçam, desobedeçam sempre, porque só desobedecendo o mundo gira e avança. Transgressio Global é isso, uma história concisa da transgressão, desde a antiguidade clássica até à Lisboa imaginada de 2084.

Os Pop Dell’Arte nunca esconderam a sua matriz esquerdalha e libertária. Basta lembrarmo-nos do seu “Juramento sem Bandeira”, um hino de resistência durante o asfixiante cavaquismo. Mas Transgressio Global é o seu disco mais abertamente político, uma resposta à crescente desumanização do mundo. Daí a revisitação do clássico de Vitor Jara “Derecho de vivir en paz”, um dos momentos mais bonitos do disco.

Um segundo tema atravessa o álbum: uma revolta contra o tempo, contra a tirania de acontecer uma coisa antes e depois outra a seguir, contra o despotismo de tudo ser tragicamente passageiro. Por isso, em Transgressio Global, tudo acontece ao mesmo tempo: Ovídio ouve Sonic Youth na rádio, Camões anda à pancada com Ziggy Stardust, o minotauro vai a saunas gay com Foucault.

Da evocação da Grécia e Roma antigas, vem uma estética nunca antes explorada pelos Pop Dell’Arte, a de um exotismo místico, cânticos de religiões pagãs há muito extintas, assombrando-nos com o seu negro psicadelismo.

Mas também há ecos de estéticas antigas, a forte identidade dos Pop Dell’Arte a vir ao de cima: o loop de “3 Things about Arvo Part you must know” sabe ao corte e cola de Free Pop (1987); a batida electrónica do tema de abertura lembra-nos o dançável Ready Made (1993); e as guitarradas de “Freaky Dance” transportam-nos para o rock’n’roll de Sex Symbol (1995).

Quem se admirar por haver canções por aqui anda muito distraído: mesmo no mais iconoclasta Free Pop, há bonitas melodias que nos ficam no ouvido. Foi sempre na fronteira da pop com o avant-garde que a banda de Campo de Ourique situou a sua estética. Transgressio Global não é excepção, sendo um disco tipicamente popdellartiano: intelectual e glam, melódico e dissonante, subversivo e camp, galgando todas as vãs fronteiras entre a alta e a baixa cultura. A voz de Peste continua pestiana, inventando sílabas sem sentido, usando a fonética como um demente brinquedo.

A capa, com um busto grego grafitado (e todo o simbolismo que ele carrega) é uma variação da capa do primeiro LP, Free Pop, completando um círculo. Mas não pensem que este disco sabe a fim. A suprema transgressão é sempre continuar…



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