Pieces of a Man é o nascimento do rap, sim, mas é muito mais do que isso. É uma obra maior da música negra norte-americana, misturando poesia, soul, funk e activismo, na voz do inimitável Gil Scott-Heron
Gil Scott-Heron (1949-2011) foi um escritor transformado em cantor, e isso faz toda a diferença. Depois de os seus pais se terem separado, Gil foi viver com a avó para o Tennessee, onde os negros são sempre lembrados da sua cor da pele. Quando a avó morreu, o rapaz de 12 anos vai viver com a mãe, para Nova Iorque, no Bronx. Este é o background de Scott-Heron, negro do campo e da cidade, que cedo impressionou toda a gente pela sua capacidade oratória e pela sua escrita.
O final dos anos 60, na América, foi o palco da luta pelos direitos civis dos negros, da oposição à guerra do Vietname, do surgimento do movimento hippie, de toda uma geração que deixou de olhar os mais velhos como um exemplo, antes pelo contrário. Mais do que a paz e o amor californiano, o mundo do jovem Gil estava mais próximo do imaginário dos escritores da geração beat e do submundo nova-iorquino, com as suas prostitutas, os seus homossexuais, os seus drogados, os seus negros.
Como dizíamos ao início, o caminho começou pela escrita, como tantos outros (Leonard Cohen é apenas o mais conhecido de muitos exemplos). Em 1970, tinha dois livros escritos e impressionava o underground literário da cidade que nunca dorme. E é das leituras das suas histórias que surge a ideia de gravar um disco ao vivo, que acabaria por ser a sua estreia: Small Talk at 125th and Lennox, de 1970. Esse disco, espartano e directo, acabou por ser o balão de ensaio para os passos seguintes e para uma carreira desordenada que duraria até à morte do seu autor, em 2011, reabilitado para uma nova geração depois de muitos anos de esquecimento.
Se a estreia havia sido pouco mais que a voz de Scott-Heron a debitar as suas histórias acompanhado por congas maníacas e um ocasional piano, o capítulo seguinte seria feito de um funk/jazz tecnhicolor. Esse disco é Pieces of a Man, editado em 1971.
Bastaria a primeira faixa, a versão mais conhecida de “The Revolution Will Not Be Televised”, para que este álbum ficasse na história. Tal como no primeiro disco, o tema abre Pieces of a Man, e as palavras são as mesmas, mas é como comparar a noite ao dia. Se a versão anterior era esparsa, dura e directa, esta surge ensopada num funk pegajoso e suado. O profeta zangado dá lugar a um activista wiseguy, cheio de ginga e estilo.
A paleta exibida nessa primeira faixa é o mapa para todo o disco, uma explosão de criatividade feito caldeirão, onde são deitados, perante os nossos olhos atónitos, soul, jazz, funk e os inícios do rap. Um dos grandes segredos para a transformação é a presença do comparsa Brian Jackson, mago das teclas e de outros instrumentos, que aqui colabora pela primeira vez em disco com Scott-Heron, numa relação que viria a dar vários belíssimos frutos ao longo dos anos. Órgão “swingante”, guitarra eléctrica, baixo irrequieto e uma flauta que tanto é anjo como demónio, estes são os ingredientes musicais desta hora de excelência. O grande trunfo é que tudo isto é feito sem nunca ofuscar as palavras de Scott-Heron, a razão para tudo acontecer, com as suas vívidas histórias de luta, de privação e de esperança.
É algo difícil destacar músicas de uma obra tão coesa e tão uniformemente bem conseguida. Além da omnipresente faixa inicial, podemos falar de “Lady Day and John Coltrane”, homenagem a Billie Holiday e ao jazzman, apresentados como a solução para quando tudo parece estar a correr mal; a maravilhosa vinheta de vida dura que é “Home is Where the Hatred Is”; o funk avassalador de “When You Are Who You Are”; a linda quase-balada soul de “I Think I’ll Call It Morning”; a realidade despida e crua de “Pieces of a Man”; ou o sentido bíblico de “The Needle’s Eye”, com as imortais frases: “All the millions spent for killing/Seems the whole world must be dying/All the children who go hungry/How much food we could be buying“.
Pieces of a Man é uma obra maior da música norte-americana, fruto da sua espontaneidade, da sua livre criatividade, da sua pureza, da sua dureza, da sua esperança tingida de melancolia.
Tantos anos depois, fica a ironia: a revolução ainda não foi feita, e desta vez está mesmo a ser televised, nos telemóveis de todos aqueles que vão apanhando os abusos dos assassinos dos nossos tempos.
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