Depois do relativo fracasso que foi Ape In Pink Marble, Devendra Banhart aposta forte em Ma. É um álbum adulto, de grande beleza e delicado como poucos.
No mais recente disco de Devendra Banhart sente-se um calorzinho bom, recomendável para o fim do verão e para o outono que virá. É um agasalho perfeito para as almas mais delicadas. Um disco maternal, repleto de pequenas carícias que só os que cuidam (mães, pais, amantes, amigos) sabem fazer. Devendra mantém sempre o mesmo registo, e nunca sobe de tom mais do que um suspiro em todo o álbum. Ma parece feito de cristal, uma vez que reflete as mais delicadas energias do seu autor, as suas ideias, vontades (chegando mesmo a cantar “Eu deveria aprender português” no tema “Carolina”), o que nos faz, involuntariamente, pensar na rapariga de mesmo nome cantada por Chico em 1967, no Festival Internacional da Canção Popular, e que Caetano também cantou mais tarde, em 1969, numa versão que gerou, na altura, alguma polémica entre ambos os artistas.
Ouvir um disco é, muitas vezes, puxar pela ponta de um novelo à espera das surpresas apensas a esse gesto intelecto-musical, digamos assim. Num álbum tão feminino como é Ma, e depois de mencionarmos o nosso querido mano Caetano, é quase impossível não nos lembrarmos da canção de Zeca Veloso, filho do baiano, que diz, repetidas vezes “Todo homem precisa de uma mãe”. E sim, é bem verdade o que diz esse refrão, e é também isso que Devendra Banhart parece querer dizer-nos ao longo de todo o seu mais recente trabalho discográfico. O disco tem a particularidade do algodão (é suave, confortável, e não engana). Ma, enquanto título e conceito, parece ir ainda mais longe, propondo e partilhando a ideia de que todos, homens e mulheres, alguma vez na vida terão sido mães. É uma linha de pensamento budista que Devendra Banhart expõe neste seu novo álbum sem quaisquer ambiguidades ou rodeios. Por isso, Ma não poderia ser outra coisa, que não um álbum cheio de ternura e afeto. As palavras são do próprio músico: “Everyone in this band has kids and I don’t. And I may not have kids, so this record became everything I would want to say to my kids, and at the same time, everything I wish that hadn’t been said, that someone said to me as a kid.” Entramos, assim, num plano de grande intimidade. Nunca Devendra Banhart se revelou como se revela em Ma.
Em termos estritamente musicais, Ma é um perfeito exemplo de um projeto minimalista. “Less is more”, a conhecida frase de Ludwig Mies van der Rohe, faz aqui todo o sentido. Quase todas as canções surgem delineadas por cordas de guitarra, cordas de orquestra, num todo orgânico de raríssima beleza. São um compêndio de bom gosto e de delicadeza. Ouvir “Memorial”, por exemplo, causa arrepios, não fosse a canção mais bonita sobre a perda de alguém querido que ouvimos desde Carrie & Lowell, de Sufjan Stevens. A morte do pai e de dois amigos chega-nos em detalhes de enorme sensibilidade e elegância. Claro que nos faz lembrar Leonard Cohen (sim, ainda estamos a puxar pelo tal novelo que há pouco referimos), e isso, na eterna ausência do canadiano, é muito bem vindo. Em “Now All Gone”, a voz de Cate Le Bon junta-se à de Devendra, assim como a de Vashti Bunyan também surge na derradeira “Will I See You Tonight?”, belíssima, uma das mais bonitas de todo o álbum. Com “Love Song” apetece-nos dançar (agarradinho) até nos faltarem as forças. “October 12” parece retirada de um disco de Caymmi (aquele violão, meu Deus!). Enfim, o que temos em Ma é um conjunto de canções amenas, distintas, nobres e generosas, sobretudo pela quantidade de sentimentos que partilham com quem as ouve.
O último trimestre de 2019 fica infinitamente mais bonito por causa de Devendra Banhart e de Ma. Conseguir dizer aquilo que se sente rente à pele não é para todos. É apenas para os muito dotados.
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