Um álbum electrizante de jazz, trazendo-nos África através do ritmo: complexo e frenético, convidando à dança e ao transe.
O jazz londrino tem dado que falar. É uma movida com uma identidade muito própria: anti-elitista, eclética e colaborativa. Malta que tem aversão a purismos identitários, contaminando o jazz com outros idiomas, e fugindo como o diabo da cruz dos circuitos fechados da alta cultura. Tocam onde lhes apetecer, com quem lhes apetecer; ninguém tem nada a ver com isso.
Um nome destaca-se deste novo jazz: o senhor Shabaka Hutchings, nascido em Londres e criado na ilha Barbados (às Caraíbas). Hiper-activo, desdobra-se em três projectos, cada um com a sua estética própria, mas todos com uma forte relação com a diáspora africana. São eles Shabaka and the Ancestors, The Comet is Coming e Sons of Kemet. Com os sul-africanos Ancestors, Shabaka trilha um jazz espiritual à Sun Ra, tão arrojado como contemplativo. The Comet is Coming cruza o jazz com electrónica, imaginando migrações africanas futuristas a bordo de uma nave espacial. Sons of Kemet percorre a mesma diáspora mas para trás, do Reino Unido de volta para as Caraíbas, e destas regressando à mãe África. No princípio era o puro ritmo.
Os dois primeiros álbuns dos Sons of Kemet são encantadores mas passaram relativamente despercebidos. Tudo mudou com Your Queen is a Reptile, trazido para a ribalta pela sua nomeação para o Mercury Prize. E com toda a justiça. É um álbum electrizante, trazendo-nos África através do ritmo: complexo e frenético, convidando à dança e ao transe. As duas baterias são o coração desta música tribal, bombeando polirritmos ancestrais em todas as direcções. A tuba faz as linhas de baixo, também muito rítmicas, aventurando-se, de quando em vez, por bonitos contrapontos melódicos. Mas a estrela da companhia é mesmo o saxofone de Shabaka: quente e ousado, hipnótico e explosivo.
Hutchings não inventou a roda: a sua fusão do jazz com ritmos africanos deve muito a Fela Kuti e ao seu afrobeat. Ainda assim, há uma frescura fora do comum. É impossível resistir à sua vitalidade transbordante.
A invocação de estéticas vindas da diáspora africana é, em si mesmo, um statement. Mas Shabaka vai mais longe, embrulhando todo o disco debaixo de um conceito abertamente político. Começa pelo título, não reconhecendo Isabel II como sua legítima rainha, acusando-a de racismo colonialista. E como preenche Shabaka este vazio de representação? Convocando dez grandes mulheres negras, uma por cada canção. Estas, sim, merecem o título de rainhas, porque lutaram corajosamente pela justiça e pela emancipação. Como sublinhado final, Shabaka polvilha o disco com alguma spoken word de intervenção, como sucede com o ragga de “My Queen is Mamie Phipps Clark”, uma terna homenagem às suas raízes caribenhas.
Se o conteúdo do disco é negativo (uma espécie de casamento entre o “The Queen is Dead” dos Smiths e o “Refuse/Resist” dos Sepultura), a forma musical é puramente afirmativa, um festim de êxtase e de ritmo. Também nós queremos cortar a cabeça à Dona Isabel mas é na celebração da torrente da vida que Your Queen is a Reptile se transcende. A nossa rainha? O tambor que nos bate no peito do primeiro ao último dia.
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